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O alvoroço das notícias

A corrida ao furo jornalístico, à cacha, tomou, rapidamente, conta dos jornalistas. Intermináveis diretos ornamentados de adivinhação e alguma matéria de facto apoderaram-se do ciclo quotidiano da informação. Como se o mundo inteiro tivesse fechado para balanço e apenas o terrorista português preenchesse o vazio. Ainda se lembra quem é João Real Carreira?

Crónica 74
17 Março 2022

É quase certo que, no dia em que lerem esta crónica, já nem se irão lembrar deste nome – João Real Carreira. Se recorrerem ao Google recordar-se-ão em 48 centésimos de segundo.

Durante três dia não falámos de outra coisa. João, 18 anos, estudante de engenharia informática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tinha planeado ao milímetro um massacre na escola onde, alegadamente, fora acusado de plágio.

Televisões, rádios, sítios online de informação, programas de entretenimento fardados de programas de jornalismo, todos juntos convidaram dezenas de teóricos da perplexidade: criminologistas, psicólogos, enormes especialistas em terrorismo, agentes da lei e da ordem, advogados despejaram-nos toneladas de saber. As sapientes teorias iam todas no mesmo sentido: com arte e engenho, a Polícia Judiciária desmantelou um ato terrorista no momento em que o terrorista estava prestes a ceifar dezenas de vidas.

A informação era escassa ou quase inexistente, mas que importância tinha isso? Os teóricos da perplexidade são pagos para aumentarem o grau de incerteza, nunca para nos tirarem as dúvidas. E, neste particular, foram exímios a cumprir o guião.

A corrida ao furo jornalístico, à cacha, tomou, rapidamente, conta dos jornalistas. Intermináveis diretos ornamentados de adivinhação e alguma matéria de facto (pouco atraente, registe-se. Afinal, os planos do jovem pareciam frágeis e o tal “armamento pesado”, que iria usar, afigurava-se leve demais para o propósito) apoderaram-se do ciclo quotidiano da informação. Como se o mundo inteiro tivesse fechado para balanço e apenas o terrorista português preenchesse o vazio.

De repente, nas televisões, nas rádios e nos jornais aparece uma inusitada entrevista: um coro desafinado de jornalistas decidiu entrevistar o avô do jovem. Fernando Silva Correia, avô paterno, quase 90 anos, despejou o que lhe ia na alma.

Fiquei a olhar para o ponto 8 do Código Deontológico dos Jornalistas em que se exige que “o jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor”. Desci até ao ponto 10 e li que “o jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos”. Mais à frente escreve-se que, “antes de recolher declarações e imagens”, o jornalista deve “atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas”.

Pode um avô de quase 90 anos estar sereno quando o neto é suspeito único de ter falhado o massacre de dezenas de colegas de turma? O que fez o pelotão de microfones senão invadir a privacidade do perplexo Fernando? Que réstia de dignidade sobressaiu neste homem profundamente ferido, absolutamente magoado?

João Real Carreira, o neto, ficou em prisão preventiva por ordem do juiz. Se João tinha “uma doença”, como confessou o avô, será a prisão o melhor lugar de cura? Mas, perante a pressão da opinião pública e do alvoroço causado, poderia o juiz resistir à medida de coação mais gravosa, mesmo que essa fosse a sua vontade?

Recordei-me, entretanto, de um caso muito antigo, fruto de um outro tempo sem redes sociais a fabricarem cenários fantasmagóricos, televisões, rádios e jornais permanentemente em direto.

A seis de maio de 1980, um jovem de 16 anos desviou um avião da TAP que deveria ter ligado Lisboa a Faro. Usou uma pistola do pai, carregada com seis balas, que ocultou na bateria de um rádio, e, depois da descolagem, invadiu o cockpit e exigiu aos pilotos que o voo 131, da companhia aérea nacional, alterasse a rota para Madrid. Exigia 10 milhões de dólares e um salvo conduto para a Suíça.

O jovem apenas queria fugir de casa, mas – impulsionado pelos diversos sequestros que eram marca do tempo - entendeu ser essa a melhor solução de fuga.

Durante o sequestro, segundo nos conta uma notícia do Observador que, em 2016, recordou o caso, o jovem terá pedido desculpa aos pilotos por todo o trabalho que a mudança de rota lhes estava a dar. Quando tudo terminou, no aeroporto militar de Barajas, o sequestrador pediu ao copiloto que ligasse à mãe, que deveria estar muito preocupada.

Os planos de João Real Carreira, o alegado terrorista da Faculdade de Ciências, parecem tão frágeis quanto os do sequestrador de 1980.

O jovem apanhou uma pena suspensa, porque o tribunal entendeu que a vida dele não deveria desperdiçar-se. O sequestrador e a família nunca tiveram de ser confrontados com o rolo compressor das opiniões dos teóricos da perplexidade, nem com os diretos intermináveis das televisões e das rádios, nem com o desvario do caudal de mentiras que, no caso do João, correu nas águas poluídas da Internet.

Nos anos 80, a vida do sequestrador nunca se perdeu.

Não creio que 40 anos depois, mergulhados que estamos neste ambiente de teses contrafeitas, tenhamos sequer tempo de nos preocuparmos com um estudante de informática que foi notícia ininterrupta durante três dias.

Para nós, o tempo dele já passou.

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