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Não há transição ecológica sem a classe trabalhadora

Uma política ecológica para a classe trabalhadora deve afirmar o controlo democrático sobre as esferas básicas da vida, como a alimentação, a energia, a habitação, a mobilidade, a educação, a saúde ou o lazer, garantindo simultaneamente o corte drástico das emissões e o abandono definitivo dos combustíveis fósseis.

Crónica 74
5 Janeiro 2023

As alterações climáticas são, incontornavelmente, uma questão de classe. Este argumento, desenvolvido por Matthew Huber no livro Climate Change as Class War – Building Socialism on a Warming Planet, transfere o enfoque da luta climática para o domínio da produção no sistema capitalista, uma vez que é aí que reside a base material inerente às emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e, consequentemente, à crise climática.

O autor defende que a ação coletiva deve ser primeiramente dirigida contra a fração da classe capitalista que detém e controla os meios de produção associados à indústria fóssil e a outras indústrias intensivas em carbono (como o aço, o cimento, ou os fertilizantes nitrogenados). Com efeito, o capitalismo assegura que uma minoria de proprietários controla e lucra com a produção, num modelo assente na acumulação contínua de capital, no consumo voraz de combustíveis fósseis e no extrativismo. Deste modo, a reprodução do sistema capitalista colide inevitavelmente com os limites biogeofísicos do planeta.

É imprescindível, pois, desconstruir e repudiar o engodo neoliberal segundo o qual os indivíduos são responsáveis por desencadear, mas também por solucionar a crise climática. Este logro, filho da ideologia da soberania do consumidor, dilui responsabilidades, distribuindo-as uniformemente por toda a espécie humana. Este discurso dominante tem de ser eficazmente refutado, sendo que o sucesso desse exercício depende da apresentação e, desejavelmente, da construção de alternativas radicais, ou seja, de projetos políticos realmente ecológicos, democráticos e necessariamente socialistas.

Recuperando o argumento de Huber, apenas um movimento popular de massas alicerçado na classe trabalhadora poderá derrotar o poder arraigado da classe capitalista. A classe trabalhadora inclui todos aqueles que estão separados dos meios de produção e que são forçados a vender a sua força de trabalho para sobreviver. Assim, além das populações historicamente marginalizadas e das comunidades na linha da frente que já estão a sofrer com os efeitos nefastos das alterações climáticas – habitualmente, as principais visadas pelo movimento da justiça climática –, é necessário incluir uma classe trabalhadora para quem as alterações climáticas ainda podem representar um horizonte longínquo, ou que se sente justamente ameaçada por uma transição energética que destrói empregos sem oferecer alternativas dignas (veja-se o caso dos trabalhadores da indústria fóssil). Realmente, uma transição energética liderada pelos protagonistas do capitalismo fóssil e destinada à sua perpetuação e “enverdecimento” jamais poderá ser justa.

Existem, então, três fatores que justificam a centralidade da classe trabalhadora na luta climática: desde logo, constitui a vasta maioria da população, coincidindo, em boa medida, com as comunidades historicamente marginalizadas e na linha da frente, pelo que qualquer projeto político que procure um respaldo democrático deverá contar com esta ampla base de apoio. Além disso, a sua localização estratégica na esfera da produção concede-lhe um poder estrutural sobre a fonte dos lucros do capital. Finalmente, dada a insegurança económica que a perpassa, tem um interesse material na transformação das relações de produção.

Uma política ecológica para a classe trabalhadora deve constituir um esforço para afirmar o controlo democrático sobre as esferas básicas da vida, como a alimentação, a energia, a habitação, a mobilidade, a educação, a saúde ou o lazer, garantindo simultaneamente um corte drástico das emissões de GEE e o abandono definitivo dos combustíveis fósseis. O delineamento e concretização desta política deverá ter em consideração algumas questões fulcrais, designadamente: como assegurar a provisão de bens essenciais de forma sustentável? O que deve ser produzido, onde, por quem e para quem? Que matérias-primas e tecnologias devem ser adotadas? Quem controla os processos de decisão relativos à produção e de acordo com que critérios?

Será, pois, fundamental reabilitar o planeamento e o investimento públicos, o que significa que as grandes decisões sobre produção e investimento deverão ser tomadas de forma coordenada por um Estado com legitimidade democrática, de acordo com critérios sociais e ecológicos e não em função do lucro. Por conseguinte, é necessário o controlo público dos setores estratégicos para esta transição socioecológica, nomeadamente, a energia, os transportes, a indústria, e a agricultura, e executar planos de transição integrados e articulados. A materialização destes planos implica investimento público, a realocação de tecnologias e impostos e subsídios cuja progressividade tem de ser assegurada.

Se é verdade que há setores económicos cuja contração ou extinção é inevitável, como a indústria fóssil, os transportes marítimo e aéreo, ou a publicidade, conduzindo à perda de postos de trabalho, existem outros que deverão necessariamente expandir-se, por exemplo, as atividades relacionadas com o cuidado, as energias renováveis, a gestão de resíduos, a vigilância florestal ou os transportes públicos. Em suma, não existe uma política ecológica rumo a uma transição socioecológica justa e democrática sem uma alteração das relações sociais de produção e de propriedade, ou seja, sem ter como horizonte a superação do capitalismo.

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