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Mercado a mais e Estado a menos na habitação

Se há domínio das políticas sociais onde o mercado não tem faltado (e falhado), é precisamente o da habitação. Temos um Estado demasiado favorável aos proprietários e aos seus direitos. A habitação será cada vez mais encarada como mercadoria e não como direito social.

Crónica 74
20 Outubro 2022

Perante a crise de habitação que Portugal e a Europa atravessam, a direita política, bem como alguns agentes do setor, associados ao imobiliário, têm insistido na ideia de que estamos apenas perante um problema de oferta, bastando por isso criar condições que permitam aumentar a produção de alojamentos.

A Iniciativa Liberal, por exemplo, tem defendido uma redução da carga fiscal e a agilização dos processos de licenciamento, rejeitando medidas tendentes ao controlo de rendas ou à imposição de restrições ao Alojamento Local e à compra de casas por cidadãos estrangeiros. Isto é, seguindo a velha cartilha de que o Estado apenas deve intervir de modo a permitir que um mercado ao serviço dos proprietários e da propriedade funcione.

Sucede, porém, que se há domínio das políticas sociais onde o mercado não tem faltado, e sim falhado, é precisamente o da habitação. Desde logo, porque a atual crise está hoje longe de se resumir a um problema de oferta, dado que o número de famílias e de casas praticamente não se alterou na última década (como já se demonstrou aqui e aqui). Por outro lado, porque muito dificilmente se poderá sustentar que foi a intervenção do Estado, em defesa das classes com menores rendimentos – por via da promoção direta (que hoje todos reconhecem ser há muito insuficiente), ou de formas de regulação democrática – que conduziu à situação atual.

O parque habitacional público existente é, de facto, exíguo, representando apenas 2% do total de alojamentos, o que nos posiciona bem abaixo dos valores registados na maioria dos países europeus. Se nas áreas da saúde e da educação foi possível constituir um SNS e uma Escola Pública, na habitação Portugal ainda não dispõe de uma rede de oferta pública a preços acessíveis. O problema da habitação em Portugal é, na verdade, um problema de Estado demasiado favorável aos proprietários e aos seus direitos.

Deve sublinhar-se, aliás, que foi o próprio Estado a incentivar, deliberadamente, sobretudo nos anos 1990, a hegemonia da propriedade privada, ao centrar as suas políticas – e a esmagadora parte dos seus recursos – nos apoios à procura, através da bonificação de juros na aquisição de casa própria, que representa, de acordo com o IHRU, cerca de 73% das verbas do OE executadas entre 1987 e 2011. Sem que tal se viesse a traduzir, ao longo do tempo, na descida dos preços da habitação, que se foi assim tornando cada vez menos acessível à generalidade das famílias.

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Gráfico habitação

Por outro lado, se a este conjunto de apoios somarmos a despesa pública em subsídios ao arrendamento, então a lógica do "cheque-habitação" – porque é disso que se trata (apoios públicos às famílias para encontrar respostas no mercado) – representa cerca de 82% da despesa pública no setor, durante os 25 anos que separam 1987 de 2011, sem que a situação se tenha alterado até muito recentemente.

Por último, assinale-se ainda que não só a despesa na promoção direta de alojamentos, essencial para constituir um parque habitacional público mais robusto, representa pouco mais de um quinto do total orçamentado (22%) entre 1987 e 2011, como acaba por se limitar, em termos de execução, a 16% do total, ao mesmo tempo que os apoios à aquisição de casa própria e ao arrendamento privado, neste período, aumentam face ao orçamentado.

Não é, por isso, por acaso que Portugal tem sido particularmente vulnerável a crises de habitação. Ao longo de décadas acreditou-se que uma regulação favorável aos proprietários e à propriedade daria, por si só, as respostas necessárias. Mas hoje percebe-se que sem uma oferta pública de dimensão adequada, que começa finalmente a dar os primeiros passos, e na ausência de mecanismos de regulação igualitários e eficazes, a habitação será cada vez mais encarada como uma mercadoria e não como um direito social.

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