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Mais uma tempestade na cultura

 Não havendo mais dinheiro para investir nos concursos, qualquer tentativa de combater assimetrias regionais ou de apoiar substancialmente os apoios quadrienais, se revela mais uma forma, camuflada, de secar o universo artístico nacional.

Crónica 74
3 Novembro 2022

Neste verão, estive a braços com a escrita de um texto para uma companhia de teatro, um texto que deu origem a um espectáculo que esteve em cena até este domingo. Esta companhia conta com dezenas de anos de existência e, a par com o seu importante trabalho de criação, tem sido um lugar de acolhimento para jovens artistas que, no seu espaço - uma mítica sala no centro de Lisboa - podem apresentar os seus espectáculos.

Como a grande parte dos meus colegas de profissão, a acumulação de trabalhos por necessidade é uma constante na minha vida - estou ao mesmo tempo em cena como actriz ali, a preparar uma encenação, a escrever para acolá, a organizar leituras e encontros - e, por isso, só pude ir ver o resultado desta parceria na passada sexta-feira. Nesse dia, ironicamente, saíram alguns dos resultados dos apoios das DGArtes.

Numa das conversas acerca da escrita desse texto, em Agosto, falou-se da real possibilidade de ser este o último espectáculo que a companhia faz, visto ser uma incógnita se vão ou não ser apoiados. Como tal, o texto do espectáculo termina com uma canção - a estrutura do espectáculo é muito aproximada à do cabaret - em que se diz “Se este for o nosso último espectáculo / obrigada pela vossa presença / Querido Ministro, querida DGartes, obrigada pela vossa indiferença / Um brinde, um brinde, temos uma boa notícia! / É que o nosso sonho, o nosso espectáculo / nem esta ameaça dissolveu / Tudo o que aqui está, é nosso / fica com quem o viveu”.

A saída dos resultados do concurso da DgArtes é sempre, sempre, esperada com angústia por parte das estruturas e dos profissionais. Na sexta-feira, pensei que, naquela sala, íamos ser sujeitos ao requinte da crueldade e da ironia e ouvir aquela canção final, assistir àquele espectáculo, no dia em que se sabe que terão que fechar portas. Contudo, o resultado dos apoios para a área de teatro não foi ainda divulgado.

A Ação Cooperativista, grupo informal que procura unir profissionais das artes e da cultura em Portugal e defender os seus direitos, avisou em Junho. Num comunicado enviado ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da Cultura e ao Diretor-Geral das Artes, alertando para uma “tragédia anunciada”, como se pode ler no texto da Ação, o grupo aponta o dedo à repetida falta de dotação orçamental, num concurso que, tomando como exemplo o caso do teatro, esgotaria o montante global disponível em 36 estruturas, num universo que, a nível nacional, é muito superior às 150 estruturas/companhias.

A dada altura, a Ação Cooperativista escreve: “Fica por demais evidente que bastaria ter perdido algum tempo com estes cálculos para que a DGArtes compreendesse a insuficiência do montante disponibilizado. É impossível que o Ministério da Cultura não tenha noção da tragédia que se anuncia. Mas ainda há tempo para evitar esta catástrofe. Reforçar a dotação orçamental deste concurso é imperativo para que se evite o colapso de várias estruturas e o desemprego de muitas pessoas que trabalham neste sector”.

Ora, quando estes concursos abriram e as estruturas prepararam as candidaturas, já era “por demais evidente” para os profissionais e para os grupos representativos do sector - aqui estava a Ação Cooperativista a fazer previsões certeiras há cinco meses - que, mais uma vez, por mais que algumas decisões importantes tivessem sido tomadas para combater as assimetrias regionais nas atribuições de apoios, o que continua a faltar é dinheiro. A resposta que nos será dada pelo ministério é a de ter sido, de facto, feito um reforço orçamental nos apoios às artes.

A questão aqui é muito simples: não é verdade. Foi aberta, a par com as linhas de apoio já existentes (circo, dança, música, ópera, artes de rua e cruzamentos disciplinares), uma nova linha de financiamento à programação. Essa medida representa um investimento financeiro na programação. Ponto. Algumas estruturas que concorrem aos apoios para Teatro poderiam também concorrer a essa linha? Poderiam. Isso resulta num aumento da verba de apoios à área de teatro, por exemplo? Não. E não foram tidos em conta os apoios extraordinários levados a cabo durante a pandemia, que permitiram a dezenas de estruturas o desenvolvimento da sua actividade e que, agora, se candidataram com legitimidade a estes concursos. Ou seja, o número de candidaturas será, muito provavelmente, maior.

A resposta possível é sempre a mesma: falta conhecimento do panorama nacional e do universo das estruturas e companhias. Tentando trocar por miúdos, o reforço feito para estes concursos, visou essencialmente duas coisas: a atribuição das verbas por regiões, para evitar a centralização dos apoios na Área Metropolitana de Lisboa e a sua organização por patamares financeiros predefinidos.

Tomando como exemplo os apoios bienais, em que a dotação é de três milhões de euros, se 10 estruturas concorressem ao patamar mais elevado e recebessem, esgotariam a verba disponível. A questão é que não havendo mais dinheiro para investir nos concursos, qualquer tentativa de combater assimetrias regionais ou de apoiar substancialmente os apoios quadrienais, se revela mais uma forma, camuflada, de secar o universo artístico nacional.

Trocando mesmo por miúdos, é como se eu usasse sempre o mesmo bolo, do mesmo tamanho, para alimentar um universo cada vez maior de pessoas, mudando, a cada vez, as regras de atribuição das fatias. Em alguns dos casos, pessoas que geralmente não comiam, passam a comer, mas há sempre quem não coma. Noutros casos, alguns que comiam menos, passam a comer mais, porque outros que comiam, deixam de ter o que comer. E ainda assim, perante essa evidência, o bolo é sempre, sempre o mesmo.

Perdoem-me a analogia pobre, mas não deixa de ser a mais explícita e pertinente, porque é de sobrevivência que estamos a falar. Não se trata só de garantir a subsistência das estruturas que compõem o tecido cultural português, mas dos profissionais que estas companhias, agora, tentam empregar. E aqui, teria que estender-me sobre a implementação do estatuto de profissionais da cultura, medida tão reivindicada pelo sector.

O estatuto vinha e vem promover a realização de contratos de trabalho - reduzir de uma vez por todas o número de pessoas a trabalhar a recibos verdes - e criar um regime de proteção social para os profissionais. Esta medida foi resultado dos protestos e pressão efectuados pelos trabalhadores e pelos grupos representativos destes últimos quando, durante a pandemia, muitos das pessoas que ficaram sem trabalho não tinham, literalmente, forma de subsistir, nem acesso a qualquer apoio social.

Lembrar-se-ão, certamente, do #unidospelopresenteefuturodaculturaemportugal. Se não se lembram, procurem esse hashtag que inundou, em 2020, as redes sociais. Implementado o estatuto - e bem! - é agora responsabilidade de quem emprega os profissionais, garantir-lhes vínculos contratuais. Isso traduz-se, naturalmente, em maior despesa para os empregadores, ou seja, para as estruturas. Ora, se as estruturas terão mais encargos a partir de agora, mais uma razão para um investimento financeiro substancial, por parte do Ministério, nestes concursos.

E é aqui que chegamos, na minha opinião, ao busílis da questão, de todas as questões acima mencionadas (e superficialmente, porque infelizmente o espaço desta crónica não chega para tanto): enquanto não houver maior dotação orçamental, enquanto não houver mais dinheiro investido na cultura, qualquer reivindicação que façamos se torna uma arma voltada para nós. Essa é a perversidade do momento que vivemos e, arrisco a dizer, da ação do Ministério da Cultura nos últimos largos anos, ainda que os ministros mudem. Como a nossa maior necessidade nunca é tida em conta, as medidas que vão sendo tomadas traduzem-se sempre numa gestão maior e mais difícil para quem trabalha, de uma precariedade que só é “endémica”, como chegou a dizer o Sr. Ministro da Cultura, porque o que continua a faltar é dinheiro. O combate à precariedade passa necessariamente pelo aumento do orçamento para a cultura em Portugal.

Qualquer outra medida se revelará insuficiente face à suborçamentação de uma das áreas que mais estrutura e enriquece um povo e um país. No momento em que escrevo esta crónica, já se somam os comunicados da REDE e da Plateia acerca dos resultados dos apoios à área da Dança que são, no mínimo, preocupantes. Ainda não saíram os resultados da área de Teatro. A tempestade ainda vai a meio. O que custa, na Cultura neste país, é viver-se assim: a prever, a avisar e a ver acontecer.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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