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A inflação e o mexilhão

O argumento de o aumento dos salários, acompanhando a inflação e os aumentos de produtividade, gerar uma espiral inflacionista é equivocado e com escassa evidência empírica. O Governo considera que a tributação extraordinária de lucros extraordinários "hostiliza as empresas", mas não considera que o corte de salários hostiliza os trabalhadores. 

Crónica 74
21 Abril 2022

Desde que a economia começou a desconfinar, temos vindo a assistir a um aumento progressivo da inflação. A retoma do consumo decorrente do desconfinamento, associada ao estrangulamento de importantes cadeias de produção, seguida do agravamento das tensões primeiro, e da invasão da Ucrânia depois, agravaram decisivamente esse quadro, em particular na área da energia, que já se reflete nas condições de vida da generalidade das pessoas.

O carácter extraordinário, e sobretudo circunscrito nas suas causas, da inflação a que estamos a assistir desqualificou ainda mais os recessivos remédios monetários habituais. Essa tem sido para já a posição defendida pelo BCE, infelizmente sem a determinação que seria necessária. Uma tendência crónica para a hesitação que já começou a fazer os seus estragos.

Confrontado com um choque económico com consequências altamente assimétricas do ponto de vista social, o Governo português é chamado a desenhar uma resposta económica que contenha e compense os efeitos da inflação. Os instrumentos para esse efeito são variados e têm impactos muito diferenciados. Implicam escolhas sobre quem vai suportar este choque económico. O Governo escolheu.

A opção por um quase congelamento nominal dos salários e pensões representará um corte real, que ocorre apesar de um aumento pronunciado da produtividade. E representará a maior redução da parte do trabalho no rendimento nacional de que há memória. Esta política será implementada por um Governo que fez campanha em torno da necessidade de alterar esse equilíbrio... no sentido inverso. E fez também do aumento do salário médio um artigo de propaganda, sem nenhuma concretização no que o poderia permitir: a legislação do trabalho e, em particular, a contratação coletiva.

O argumento de que o aumento dos salários, acompanhando a inflação e os aumentos de produtividade, geraria necessariamente uma espiral inflacionista é um argumento equivocado, com escassa evidência empírica. Mas mesmo dando como bom esse argumento, não se percebe porque é que a mesmíssima lógica não se aplica ao controlo de preços ou à tributação extraordinária dos lucros? Martin Sandbu, um insuspeito liberal que escreve no Financial Times, confronta o Banco de Inglaterra com essa mesma perplexidade (tradução minha): "Pergunta genuína: porque é que o governador do Banco de Inglaterra apela à contenção nas reivindicações salariais, mas não apela à contenção nos esforços das empresas para proteger as suas margens de lucro?"

O Governo nem se pode queixar da falta de apoio internacional. A Comissão Europeia autorizou explicitamente o controle de preços da energia e a tributação extraordinária de lucros, reconhecendo o carácter específico da península ibérica e os seus próprios pecados na manutenção do isolamento energético (?) desta região. OCDE e FMI também já defenderam a mesma medida. O Ministro da economia reconheceu que "em situações excecionais, às vezes são necessárias medidas excecionais", mas afasta "para já "a medida porque é preciso "não hostilizar as empresas". Registe-se, portanto, que a recuperação da maior pandemia global de que há memória e uma guerra na Europa não chegam para configurar uma situação extraordinária. Registe-se também que o Governo considera que a tributação extraordinária de lucros extraordinários é uma medida que "hostiliza as empresas", mas aparentemente não considera que o corte de salários hostilize os trabalhadores. 

As opções que constam do orçamento e de outras tomadas de posição de vários membros do Governo são cristalinas. Todo o impacto da inflação importada irá recair sobre os trabalhadores. Mesmo que se considerasse que a partilha equitativa desse impacto entre capital e trabalho constituiria uma política decente, isso está fora de questão. Quando o mar bate nesta rocha governada com maioria absoluta, quem se lixa é apenas o mexilhão.

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