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Habitação, crise e especulação: o BCE no seu labirinto

A expectativa do BCE quanto a um "arrefecimento" do mercado imobiliário, a ponto de o mesmo se traduzir numa "viragem" relativamente à expansão registada nos últimos anos, estará muito dependente da saúde financeira de segmentos da procura que olham para as casas como ativos de investimento. 

Crónica 74
22 Novembro 2022

Possivelmente animado pela opção de subir as taxas de juro, o Banco Central Europeu (BCE) acredita que "a expansão do mercado imobiliário dos últimos anos poderá estar a chegar ao fim". De facto, convicto de que os financiadores de crédito estão hoje "mais cautelosos" e as famílias menos inclinadas a recorrer à banca, em virtude do "aumento brusco" dos juros, o BCE vê "sinais de viragem" no setor.

Não sendo de excluir sequer a hipótese de rebentamento de uma bolha imobiliária, o futuro dir-nos-á se assim é ou se esta previsão do BCE traduz sobretudo, mais do que dados consistentes, um pensamento esperançoso, motivado pela vontade de a instituição dirigida por Christine Lagarde ver validada a política que adotou para travar a inflação, cuja eficácia tem sido amplamente discutida, por exemplo, no Ladrões de Bicicletas (ver aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui).

A dúvida que subsiste, neste prognóstico, é de facto a de saber se o BCE está a considerar todas as dinâmicas atualmente relevantes do setor imobiliário, incluindo as que se associam ao investimento especulativo, nacional e internacional, que encara a habitação como um ativo financeiro e não com base na sua função residencial. Ou seja, lógicas que obrigam a pensar a oferta e a procura muito para lá das necessidades habitacionais das famílias e da avaliação de risco, pelos bancos, na concessão de crédito para aquisição ou construção.

De facto, como se demonstrou aqui, o aumento vertiginoso dos preços da habitação nos últimos anos, que afeta a generalidade dos países europeus, dificilmente se pode explicar por um acréscimo da procura (famílias) face à oferta (alojamentos). Assumindo 2015 como referência (2015=100), o número de famílias na UE27 passa a rondar, em 2020, os 102,5%, tendo os alojamentos superado esse valor e ascendido a 104,1%. Ou seja, os preços da habitação disparam entre 2015 e 2020 (126,9%) num contexto em que tanto a oferta como a procura quase não se alteram.

 

Europa: Evolução dos Preços da Habitação e do número de Alojamentos e Famílias (2012-2020)

 

Significa isto que a expectativa do BCE quanto a um "arrefecimento" do mercado imobiliário, a ponto de o mesmo se traduzir numa "viragem" relativamente à expansão registada nos últimos anos, estará muito dependente da saúde financeira de segmentos da procura que olham para as casas como ativos de investimento. E se tivermos em conta que a crise que estamos a atravessar não tem os mesmos impactos em todas as famílias e em todas as empresas, há razões para encarar com ceticismo o recente prognóstico do Banco Central Europeu.

Aliás, não deve deixar de assinalar-se, neste contexto, a responsabilidade do próprio BCE na criação do enquadramento político e macroeconómico que conduziu à atual crise. De facto, desde a limitação da intervenção dos Estados no setor da habitação, tanto pela via da promoção direta como da regulação, até à defesa da ideia de que estes devem, isso sim, assegurar e incentivar o funcionamento do mercado, passando pelo papel ativo que assumiu nos processos de financeirização, o Banco Central Europeu é hoje indissociável do ponto a que se chegou, marcado pela prevalência de lógicas especulativas na habitação.

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