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Este governo é de esquerda, a não ser quando governa

Sempre que se trata de enfrentar o poder económico para garantir direitos elementares, o governo de maioria absoluta padece de uma súbita e voluntária impotência. Os direitos à habitação, à alimentação, à saúde, à educação, à pensão, enfim, a uma vida digna, podem ficar eternamente por cumprir.

Crónica 74
6 Abril 2023

Há uma nova moda na governação em Portugal: a política dos apelos. Esta política consiste na substituição de medidas concretas de governação por apelos feitos pelo Governo a setores da sociedade. A política dos apelos não é para todos, bem entendido. Quem vive do seu trabalho ou quem trabalhou a sua vida toda e hoje vive do rendimento da sua pensão, está sujeito às políticas habituais: leis, regulamentos, proibições, obrigatoriedades (exceto quando o governo decide que afinal as leis não são para cumprir, como no caso da atualização das pensões). Os únicos apelos que lhes são dirigidos são os apelos à compreensão das medidas anteriormente referidas.

Mas aos detentores de propriedade aplica-se outra gama de ferramentas: aqui o Governo trabalha com isenções, apoios ou incentivos em troca de usos da propriedade que contribuam para objetivos constitucionais como o acesso à habitação, alimentação, energia, saúde, etc. Como é que se assegura que estes usos efetivamente ocorrerão? O Governo faz um apelo aos proprietários nesse sentido.

Os exemplos são múltiplos: com a crise da inflação, constata-se que a legislação laboral saída do período da troika, e em particular o aumento da precariedade e o declínio da contratação coletiva, tem impedido a atualização (para já não falar do aumento) dos salários. De repente, já ninguém fala da necessidade dos salários andarem a par contra a produtividade. O Governo, em vez de rever esta legislação e repor mecanismos que assegurem que os salários não perdem valor por força de uma inflação predominantemente movida pelos lucros (como tem demonstrado o BCE), celebrou um acordo sobre os rendimentos com os patrões.

Este acordo garante aos patrões um conjunto de benefícios fiscais que têm sido defendidos pelos partidos da direita em troca de... bom, em troca de nada. O Governo traça uma evolução desejável dos salários, atribui ainda mais benefícios aos patrões que cumpram com essa evolução, mas não os obriga a nada. Nos dias seguintes à assinatura deste “acordo”, várias das grandes empresas vieram rapidamente esclarecer que não se comprometiam com aumentos nenhuns, não fossem os mais ingénuos pensar que a coisa era para valer.

Outro exemplo mais recente é o da redução do IVA para um cabaz de bens essenciais, outra medida defendida pelos partidos da direita, desde que sem controlo de preços. A medida desagrava a distribuição em 410 milhões, segundo contas do governo. O Governo reuniu como as empresas da distribuição e daí saiu o compromisso de que esta redução do IVA não seria absorvida pelas margens das empresas de distribuição, como o próprio executivo temia ainda há poucas semanas. Esse compromisso será fiscalizado… por uma empresa privada, paga com dinheiros públicos para fazer aquilo que os reguladores não fizeram. António Costa "confia naqueles com quem assinou o acordo", o que é tocante.

Mas os apelos não são necessariamente dirigidos aos patrões. O Governo com maioria absoluta do PS apela às câmaras para que apliquem a lei que permite o arrendamento compulsivo ou a tributação agravada de fogos devolutos por não o querer fazer, pede aos sindicalistas do PS que exijam dos patrões o que não impõe. Apela a que se reverta a política monetária restritiva, que penaliza Estados e famílias sobreendividadas, depois de ter defendido e continuar a defender a independência do BCE.

O ponto comum da política dos apelos, mais do que nos destinatários, está nos objetivos. Sempre que se trata de enfrentar o poder económico para garantir direitos elementares, o governo de maioria absoluta padece de uma súbita e voluntária impotência. E aqui é que bate o ponto.

Sempre que se discute qualquer forma de regulação da atividade económica que implica restrições ao uso ou abuso da propriedade, a violência da resposta publicada é impressionante. Fala-se, por exemplo, do arrendamento compulsivo de fogos devolutos com a linguagem que se utiliza para violações dos direitos humanos. Note-se que nem estamos a falar de uma expropriação, e até poderíamos. Falamos de obrigar um proprietário a colocar o seu imóvel no mercado, o que permite dar um contributo para combater uma emergência social. É ver o escândalo na direita e extrema-direita. Pelo contrário, os mesmos que se indignam com medidas de absoluto bom senso, tratam os níveis de pobreza, a degradação dos salários, o colapso de serviços públicos ou a emergência da habitação como assuntos quotidianos de que se há-de tratar um dia, com tranquilidade, e de preferência com apelos.

Para o poder económico, para o bloco central e para a direita, o único verdadeiro direito humano é o da propriedade. Os direitos à habitação, à alimentação, à saúde, à educação, à pensão, enfim, a uma vida digna, são direitos que podem ficar eternamente por cumprir. Os que deles precisam têm de ouvir apelos à sua paciência, têm de ouvir que a culpa é sua e ainda têm de ouvir o ministro da Economia dizer que este país “trata o lucro como um pecado”. Neste país não sei, mas neste Governo a lata é de ouro.

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