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É preciso pôr cadeados na comida para que não seja lançada a quadros

Os vistos para nómadas digitais com rendimentos superiores a 2800€ / mês só vão agravar a especulação imobiliária, ao mesmo tempo que continua a haver despejos de família pobres, sem qualquer solução, havendo registos de algo que não se via há muito em Lisboa: crianças a viver na rua.

Crónica 74
27 Outubro 2022

Isto é que tem sido uma galhofa, hã? Não há dia em que a humanidade não me pareça ainda mais absurda do que no dia anterior e, ainda assim, há qualquer coisa de fascinante em que assim seja. Isto não é de todo algo bom, atenção, até porque estamos a falar de uma absurdidade que teima em piorar – e muito – a vida de milhões de pessoas, mas ver tudo isto com um certo fascínio creio que seja uma forma de auto-protecção da minha, já de si precária, saúde mental.

Não confundamos fascínio com o absurdo com um cinismo sem esperança no futuro, mas acho que só mesmo assim é que vai dando para gerir tudo o que se tem passado.

Há mais de quatro milhões de portugueses a viver na pobreza, e há gente tão desesperada com fome que os roubos nos supermercados aumentaram. A reacção de alguns supermercados? Não continuar a subir os preços? Nem pensar. Pôr caixas duras e alarmes em muito mais alimentos, não fosse o furto de azeite e latas de atum fazer mossa nos milhões e milhões de euros de lucro que ainda agora foram apresentados.

Mais fascinante do que isto só mesmo a reacção de tanta gente que saiu em defesa dos pobres… supermercados. Perante o dilema “será que sinto mais empatia por quem passa fome e rouba comida já em desespero, ou por quem tem lucros milionários e precisa, também desesperadamente, de proteger latas de atum como se fossem quadros do Van Gogh?”, parece que nem de meio segundo precisaram para escolher o seu lado. Eu é que escolhi mal, porque quando disse no Twitter que era triste que houvesse tanta gente mais preocupada com o lucro do que com a fome, ainda fui acusado de ódio aos ricos. Ódio, sublinho.

Entretanto, como vocês que aqui estão a ler são muito inteligentes, agarraram logo aquela referência a Van Gogh que serviu para misturar aqui outro badalado assunto. A lata de sopa do (protegido) quadro do génio holandês. Tirando uma ou outra excepção, foi divertido ver como quase todo o comentariado nacional, nos jornais ou televisão, reagiu ora com indignação, ora com desprezo e sobranceria. Desprezo pelas empresas petrolíferas que continuam a lucrar biliões enquanto destroem a vida na Terra, e contra as quais os activistas se manifestaram? Indignação por haver demasiada gente em cargos governamentais e corporativos a levar de ânimo leve a crise climática? Pois claro que não. A única preocupação foi mesmo com o eventual dano dos quadros (que não aconteceu) e com a performance dos activistas. Curiosamente, mesmo que não o percebam, esta atitude prova precisamente o ponto dos activistas nesta confrangedora sociedade do espectáculo. Para as elites, financeiras ou sociais e com tanto poder comunicacional, a fome e desgraça de tantos é mesmo nota de rodapé.

Querem mais? Bom, podia falar-vos também de como apenas 8% das casas em Lisboa para arrendar têm uma renda inferior a 1000€ (é preciso plasmar aqui qual é o salário mínimo nacional?), de como os vistos para nómadas digitais com rendimentos superiores a 2800€ / mês só vão agravar a especulação imobiliária, ao mesmo tempo que continua a haver despejos de família pobres, sem qualquer solução, havendo registos de algo que não se via há muito em Lisboa: crianças a viver na rua.

Também poderia aqui perorar sobre como a narrativa de alguma comunicação social, dos partidos de direita e de parte da população se desvia da responsabilização das grandes corporações que não param de lucrar, para culpabilizar os pobres pela sua situação de miséria (incluindo os 96% de portugueses ciganos que vivem abaixo do limiar da pobreza). E claro que aqui surge a direita da caridadezinha, a da Isabel Jonet, que diz que os pobres precisam de formação para saber gastar “bem” o apoio de 125€, como surge também a direita extrema que no seu tom de ridículo e bafiento autoritarismo vem avisar que este apoio não é para gastar em “whisky, tabaco e droga”.

Posto tudo isto, e faltando aqui muito mais, há conclusões óbvias a tirar: há quem queira a todo o custo criminalizar a pobreza, o mundo é cada vez mais absurdo, e por causa disto tudo, é claro que vou gastar os 125€ em tabaco, álcool e droga.

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