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A democracia, a casa maior

Por mais que a casa de cada um possa ser o lugar onde os afectos se aprendem, serve assim a democracia como casa maior onde não é vedada a entrada a ninguém. É essa a sua grande beleza, a sua inquestionável força.

Crónica 74
7 Abril 2022

A 24 de Março de 2022, contámos mais dias em democracia do que em ditadura. A minha crónica sai neste mês de Abril que é, na verdade, mais do que um mês; este mês que, desde 1974, começa em Janeiro e só termina em Dezembro, que é o ano inteiro, que se inaugurou com a madrugada que se esperava, “o dia inicial inteiro e limpo”, como escreveu Sophia e, até hoje, foi terreno fértil para o exercício dos nossos direitos e deveres e para a manutenção dessa coisa tão delicada que é a Liberdade.

Há dias vi Os Filhos da Madrugada, programa de entrevistas da Anabela Mota Ribeiro que contava com a presença da realizadora Catarina Vasconcelos que, à pergunta “o que é que o 25 de Abril te deu?”, respondeu com um sorriso rasgado “tudo”. O imediatismo do seu sorriso é prova da certeza e clareza, para a artista, da possibilidade que a democracia lhe deu de ser tudo o que quis ser. É primeiramente no seu sorriso que está o seu apreço pela vida tal como esta a conhece. A importância desta resposta é que esta é contundente, total, sem margem para dúvidas e dizendo tudo sobre a democracia, diz tudo sobre a ditadura. No caso de Catarina, “tudo” é mesmo “tudo”: a democracia veio dar-lhe - como a mim, aliás - a possibilidade não só de ser artista, mas de amar livremente, que é como quem diz, de existir.

A realizadora ressalva que ser homossexual em Portugal ainda era crime no início dos anos 80. Escapou Catarina por quatro anos, escapei eu por seis. Não nascemos criminosas por pouco.

Perante a página em branco, à espera que esta crónica se materializasse na minha cabeça, lembrei-me das palavras de Bell Hooks, no seu “All About Love”, em que esta diz “Não nascemos a saber amar, mas nascemos capazes de receber e responder ao cuidado. É o ambiente em que crescemos que nos ensina, ou não, o Amor. O Amor tem que ser ensinado”.

E eu penso na fragilidade da democracia, no quanto esta exige de nós para não se ver subvertida, adulterada, no quanto esta nos pede um exame de consciência constante, colectivo, porque nos pede a grande responsabilidade do diálogo e da escuta, porque está em permanente mudança e sujeita a revisões, ao passo que a ditadura é estanque: é onde morre toda a subjectividade, toda a dúvida, toda a diversidade. A ditadura não pensa, não se questiona, quer-nos uniformizados, quer-nos arrebanhados, calados.

Depois de ler Bell Hooks, quando penso no direito a amar, penso a priori no direito a ser ensinada a amar, no direito a nascer num contexto que nos receba com dignidade e responsabilidade e que nos prepare, enquanto crescemos, para o exercício dessa força motriz da vida. É, afinal, daí que vem tudo o que fazemos: daqueles que souberam ou não souberam amar-nos. É sempre por eles ou contra eles que nos construímos.

E não é a democracia que nos garante nada acerca do contexto em que nascemos e somos educadas/os, sabemo-lo, a repressão, o desamor e a violência podem surgir em contexto familiar, escolar e o alcance da sua destruição é difícil de aferir. O trabalho da democracia é afinar-se, melhorar-se, tendo sempre como prioridade aqueles que mais precisam que esta seja justa: os que sofrem a injustiça social, a estigmatização e o esquecimento na pele.

À luz da minha experiência enquanto mulher lésbica - e voltando à resposta de Catarina Vasconcelos - este “tudo” que a democracia nos deu não contempla um caminho sem nos batermos de frente com o preconceito, com a estigmatização, nos mais diferentes contextos, mas a possibilidade de sonhar uma alternativa. A democracia garantiu-nos um país plural, diverso, no qual encontramos exemplos que nos confirmam e nos fazem crer, em idades em que essa sensação é estruturante, que há “mais mundo”, que não estamos sós.

Por mais que a casa de cada um possa ser o lugar onde os afectos se aprendem, serve assim a democracia como casa maior onde não é vedada a entrada a ninguém. É essa a sua grande beleza, a sua inquestionável força. 

Não é a certeza da liberdade que a democracia nos garante, (por mais que esta seja a palavra mais bela que vão ler neste texto, é também a mais difícil de definir) mas a certeza da pluralidade, do espaço à especificidade de cada um.

Eu que não vivi em ditadura, por mais que tenha lido e ouvido muitos testemunhos daqueles que viram a queda do regime, e não sei o que é conquistar esses direitos pela revolução ou o que é pensar que “essa liberdade já não veio a tempo para mim”, como disse uma vizinha minha do alto dos seus 90 anos, lamentando não ter estudado mais, tento imaginar como seria ter nascido antes de 74. Somo à dureza da assunção da minha homossexualidade em casa, junto da minha família e amigos, a repressão e criminalização da minha existência pelo “regime” e tudo o que imagino que se faça para sobreviver, se sobrevivermos. Se me permito aprofundar este exercício de imaginação, acabo com um retrato em tudo distante de mim, no qual desapareço totalmente, para dar lugar a alguém que, em boa verdade, não teria grandes razões para continuar aqui.

É por isso que, à semelhança de Catarina, quero aproveitar este espaço, neste mês de Abril de 2022, para agradecer à democracia e àquelas e aqueles que lutaram por ela, que perderam a vida por ela e que abriram caminho para que hoje, mais ou menos conscientes da sua fragilidade e grandeza, possamos menosprezá-la e testá-la, sem saber o que estaríamos afinal a perder.

À democracia em tudo por melhorar, mas em tudo a melhor casa em que nascer, nos 40 anos da despenalização da homossexualidade, quero agradecer ter-me dado a vida.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico. 

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