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Davos é uma iniciativa liberal e o governo português também

Num país que assistiu a um aumento do risco de pobreza sem precedentes durante a pandemia, o Orçamento do Estado de 2022 incluiu um  irrisório pagamento único de sessenta euros aos mais pobres, que assim continuarão a empobrecer. Ao mesmo tempo, garante uma transferência, superior à dos tempos da troika, de rendimentos do trabalho para o capital.

Crónica 74
2 Junho 2022

O Fórum Económico Mundial, que se reuniu uma vez mais em Davos, na Suíça, é um ponto de encontro da oligarquia internacional. Foi aí que a Oxfam decidiu apresentar um breve diagnóstico do capitalismo realmente existente – “lucrar com o sofrimento” –, acompanhado de algumas recomendações políticas.

A Oxfam conclui que os “bilionários de Davos têm muito que celebrar”, já que as suas fortunas cresceram mais nos últimos 24 meses do que nos últimos 23 anos. Em particular nos setores da energia, da alimentação ou da distribuição, onde os preços estão a aumentar e as fortunas estão a acumular-se a um ritmo alucinante, agravando o já brutal sofrimento das classes populares.

Modestamente, a Oxfam alinha com organizações internacionais insuspeitas de simpatias social-democratas, como o FMI ou a OCDE, propondo um imposto temporário sobre os lucros, caídos do céu, obtidos pelas empresas da fileira energética, dos combustíveis à eletricidade. Alguns governos, da Hungria ao Reino Unido, passando pela Itália, têm adotado medidas fiscais compensatórias desta natureza, embora não com a ambição da Oxfam, que não deve ter tido muita sorte com a proposta naquele sítio.

Em Portugal, o Governo declarou não querer “hostilizar”, expressão do Ministro da Economia, as grandes empresas. Afinal de contas, décadas de privatização e de liberalização na fileira energética criaram um capitalismo fóssil e de herdeiros, também dedicado ao luxo, onde se destaca um apelido e uma empresa: Amorim e Galp. A energia é o poder deles, sem freios nem contrapesos. Se o Governo recusa assumir um modesto poder compensatório de natureza fiscal, o que dizer do controlo urgente de margens e de preços, e da necessária alteração das relações de propriedade?

Há quarenta anos, no início da contrarrevolução neoliberal que aumentou o poder das grandes empresas, um economista social-democrata norte-americano, John Kenneth Galbraith, resumia com fina ironia o credo ainda hoje hegemónico: “Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos.”

Num país que assistiu a um aumento do risco de pobreza sem precedentes durante a pandemia, dada a insuficiente resposta orçamental por parte de um Governo fiel às suspensas regras orçamentais europeias, o Orçamento do Estado de 2022 incluiu um aviltante, porque irrisório, pagamento único de sessenta euros aos mais pobres, que assim continuarão a empobrecer. Ao mesmo tempo, garante uma transferência, superior à registada nos tempos da troika, de rendimentos do trabalho para o capital, à boleia da erosão do poder de compra dos salários num contexto de subida da produtividade.

Em Portugal também se lucra com o sofrimento. Até quando?

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