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A coragem de dizer NIM

Sente-se no ar, instalou-se confortavelmente no nosso dia-a-dia e chafurda sem pudor nos jornais, televisões e nessas novas mesas de café que são as redes sociais. Trata-se da crispação. É, por definição, um estado de tensão, irritação e agressividade e não é preciso ser-se muito esperto para perceber que a sua presença inviabiliza o diálogo civilizado.

Crónica 74
3 Março 2022

O espaço de debate é aquela terra neutra onde ideias opostas se juntam para, idealmente, dar origem a uma ideia nova suficientemente conciliadora que permita o avanço para novas paragens. Para isto acontecer, o lado A e o lado B (ou quantos mais houver) têm de estar à partida dispostos a ouvir, ceder, reconhecer, retroceder ou, numa palavra, debater. Este acto civilizado assenta em dois conceitos que fazem parte do ADN não só da Humanidade, como da própria Natureza: mutabilidade e diversidade. Nada é eterno e imutável, assim como a diferença é condição “sine qua non” do que somos e do que nos rodeia. Negar isto é negar a vida e, no caso do debate de ideias, é transformar uma terra neutra numa terra infértil.

Serve esta curta e um tanto pretensiosa introdução para lançar o tema que me veio logo à cabeça aquando do convite para escrever esta crónica. Sente-se no ar, instalou-se confortavelmente no nosso dia-a-dia e chafurda sem pudor nos jornais, televisões e nessas novas mesas de café que são as redes sociais. Trata-se da crispação.

A crispação é, por definição, um estado de tensão, irritação e agressividade e não é preciso ser-se muito esperto para perceber que a sua presença inviabiliza o diálogo civilizado. E de onde vem esta crispação? A minha primeira aposta é que vem da educação, ou da falta dela. O não investimento na educação como factor primordial para a evolução da sociedade fez com que chegássemos a este ponto, em que a cultura de geral passou a residual. Se do lado académico, a sofisticação do conhecimento obriga a uma cada vez maior especialização (para não dizer funilização), do lado da escolaridade mínima obrigatória a cultura é servida mastigada para uma fácil digestão e esquece-se mal é vomitada em cada prova ou exame.

O resultado é uma redução generalizada do conhecimento do mundo em toda a sua complexidade passada, presente e futura. Sabemos só o que é exigido para a especificidade das nossas funções e tudo o resto é uma amálgama indecifrável e rejeitada sem pudor. Por exemplo, todos sabemos ler, mas cada vez menos conseguimos perceber efectivamente o que acabamos de ler. Juntamos letras e formamos palavras, sequenciamos palavras e formamos frases, mas o significado perde-se ali algures a meio do processo, por uma endémica falta de referências.

Se a isto juntarmos um individualismo altamente estimulado pelo consumo e um profundo desinteresse pela auto-formação (61% dos portugueses não leram qualquer livro em 2020) percebemos porque nos encontramos nesta terra infértil. Percebemos a crispação. Percebemos a dormência e a abstenção. Percebemos o Chega e a guerra da Rússia com a Ucrânia (e o mundo). Percebemos porque é que o Facebook se recusa a moderar conteúdos – eles, melhor que ninguém, sabem que num mundo a preto e branco, os tons de cinzento não geram clickbaits.

Falando nesse campo de batalha altamente polarizado, algures ali pelo meio da pandemia surgiu todo um escárnio e mal-dizer a propósito de um video-clip feito por uns “betos de Cascais” onde manifestavam o desejo e até necessidade vital de voltar a ir à missa com os seus corpos presentes. A chacina foi imediata. O tom de gozo deixou rapidamente de ter piada e passou a ser só ofensivo e desrespeitador do direito que o outro tem a pensar de forma divergente da minha.

Fui aos comentários e critiquei a forma como quem exige continuadamente respeito pelo género, cor, sexualidade e afins (sim, era a página de uma pessoa de mentalidade supostamente aberta) estava a tratar um grupo que estava legitimamente a expressar a sua fé. Fui igualmente chacinado. E de tal forma que acabei com o meu Facebook. Fiz aquilo que o Adolfo Mesquita Nunes mencionou em Dezembro de 2018 no podcast Quarenta e Cinco Graus (desse empenhado fomentador de diálogo chamado José Maria Pimentel): a auto-exclusão do debate público. Pois, perante a falta de disponibilidade geral para o consenso, atirar a toalha a meio de uma discussão insana acaba por ser uma reacção natural.

Mas não tem de ser assim. E fundamento esta minha esperança com uma expressão espanhola, que é uma espécie de mito-urbano das citações, por não haver quórum relativamente ao seu autor e até da sua exactidão, mas acho que aponta o caminho para a saída desta terra de ninguém: “la derecha se quita viajando.” A direita surge aqui como sinónimo de conservadorismo, nacionalismo, provincianismo, estagnação. E a viagem é a via para que todos estes princípios voem pela janela fora, através do contacto com o outro, com a sua cultura, individualidade, peso, importância e diferença.

Quando, em suma, viajamos para dentro do outro e aí descobrimos um “admirável mundu nôbu” (ali algures entre o Aldous Huxley e o Dino d’Santiago). Esta viagem é a tal terra neutra que falei no início do texto, o sítio onde o A deixa de ser só A, o B só B, e passam ambos a ser melhores versões de si próprios. Quando o A abre mão do seu NÃO e o B do seu SIM e ambos dizem, orgulhosa e corajosamente, NIM.

P.S.: a leitura desta crónica soa melhor acompanhada por

“Fuck you” - Lily Allen

e

“Tudo certo” - Branko e Dino d’Santiago

 

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