Índice

Com a etnia o racismo se apaga?

Mudam-se as palavras, mudam-se as práticas? Será esta a ‘arma secreta’ do Governo para combater o racismo? Ainda não se percebeu que a semântica por si não transforma realidades? Ou será que alguém ainda acredita que a transição das “colónias” para as “províncias ultramarinas” eliminou a violência criminosa que grassava nos territórios africanos?

Crónica 74
16 Novembro 2022

Portugal continua a adiar a implementação do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, documento que prevê entre outras acções, a criação do adiado e ansiado Observatório Independente do Discurso de Ódio, Racismo e Xenofobia.

Portugal teima em não autonomizar o crime de racismo no Código Penal, ‘esvaziado’ entre alíneas do artigo 240.º, que discorre sobre “Discriminação e incitamento ao ódio e à violência”.

Portugal insiste em manter inalterado o n.º 1 do artigo 250.º do Código de Processo Penal, apesar de incontáveis denúncias sobre o seu efeito directo na criminalização de cidadãos negros. Para quem desconhece, esse articulado autoriza os órgãos de polícia criminal a “proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção.” Qualquer semelhança com o “Stop & Frisk” dos EUA não é pura coincidência.

Os três exemplos apresentados revelam como a luta anti-racista continua excluída das prioridades do Executivo.

Apesar de as propostas por adoptar expressarem reivindicações de quem sente na pele o racismo e o combate diariamente, o Governo prefere mantê-las na gaveta e embarcar em manobras de distracção constitucional.

À boleia do processo de revisão constitucional iniciado pela formação da extrema-direita com assento parlamentar, o Partido Socialista decidiu apresentar as suas propostas de alteração à Lei Fundamental, apontando, entre outras sugestões, a substituição do conceito de "raça" pelo de "etnia".

Mudam-se as palavras, mudam-se as práticas? Será esta a ‘arma secreta’ do Governo para combater o racismo? Nesta fase da História portuguesa, ainda não se percebeu que a semântica por si não transforma realidades? Ou será que alguém ainda acredita que a transição das “colónias” para as “províncias ultramarinas”, ancorada em narrativas lusotropicalistas, eliminou a violência criminosa que grassava nos territórios africanos?

Defender que “raça” e “etnia” são sucedâneos equivale a obliterar os processos de racialização que nos demarcam, e que não se extinguem porque a Ciência decretou que biologicamente não há raças.

Socialmente elas existem, e transportam séculos de opressões que se renovam em múltiplas continuidades coloniais.

Basta recordar os resultados do último European Social Survey divulgado (de 2018/2019). Segundo este inquérito europeu, 62% dos portugueses manifestam racismo, havendo mesmo quem ainda acredite que há grupos étnicos ou raciais mais inteligentes e trabalhadores, e culturas “por natureza” mais civilizadas do que outras.

Como desmantelar estas crenças sem considerar a ideia de raça que lhes está subjacente?

Se a negação do racismo já é bem notória em Portugal – com desacordos vários sobre a necessidade da recolha de dados étnico-raciais e a adopção de medidas de reparação, como quotas de acesso ao Ensino Superior para populações racializadas –, que efeito terá o apagamento da palavra raça da Constituição?

Eu não gozo do privilégio de poder arriscar para saber.

Paula Cardoso escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt