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Asfixiados pela cultura de cancelamento

Esta cultura de cancelamento está a asfixiar-nos e o ar torna-se irrespirável quando os comediantes, e não só, não podem dizer absolutamente tudo o que lhes vem à cabeça sem terem que ouvir logo um monte de queixinhas.

Crónica 74
13 Julho 2022

Enquanto comediante, mas também enquanto cidadão, sinto que tenho de falar sobre isto. Aproveito que tenho aqui um tempinho livre, entre a tour de stand-up de cinquenta datas que estou a fazer pelo país, a rubrica que tenho na rádio todas as manhãs, os vários programas que tenho em horário nobre nos canais principais, os livros que escrevo, as minhas redes sociais nas quais tenho centenas de milhares de seguidores, as entrevistas que dou todas as semanas e os cinco podcasts que tenho, para vos dizer, nesta coluna de opinião na qual escrevo há anos, que estamos quase a parecer uma ditadura na qual não se pode dizer nada.

Esta cultura de cancelamento está a asfixiar-nos como uma maçã num leitão assado, e o ar torna-se irrespirável quando os comediantes, e não só, não podem dizer absolutamente tudo o que lhes vem à cabeça sem terem que ouvir logo um monte de queixinhas.

Isto do wokismo – ou seja, de supostamente muito mais gente estar desperta para os diferentes tipos de desigualdades e injustiças sociais, e com elas não se conformar – também está a fazer com que muita gente fique sem sentido de humor.

Antigamente havia muito mais gente a rir-se de piadas sobre gays, trans, mulheres na cozinha, ciganos e negros, porque são tipos de piada mesmo muito engraçados. Agora não só não se riem, como ainda fazem questão de dizer que este tipo de piadas, além de fraquíssimas do ponto de vista artístico, contribuem para a validação de pensamentos homofóbicos, machistas e racistas na sociedade.

Primeiro, com que direito é que estas pessoas acham que podem criticar o nosso humor, às vezes usando palavras mesmo duras e que podem ferir os nossos sentimentos? Vão-me perdoar, mas não pode valer tudo na liberdade de expressão. E depois, são só piadas. As palavras não aleijam, que eu saiba, se vierem em forma de piada. Apenas se vierem em forma de crítica. Há uma diferença clara, que estas pessoas não estão a perceber, entre eu fazer uma piada racista (porque é só uma piada e não magoa ninguém) e dizerem que contribuo para o racismo (o que é uma crítica e pode deitar-me abaixo).

Este fenómeno de horroroso escrutínio a que estamos sujeitos, só se tornou possível, claro, graças às redes sociais. E a verdade é que as redes sociais já trouxeram grandes coisas ao mundo, tal como a possibilidade do meu humor chegar a milhões de pessoas, mas também coisas muito chatas, como a possibilidade do meu trabalho estar tão facilmente sujeito a críticas.

Antes deste advento, ou as pessoas (nomeadamente pertencendo a minorias e com quem tem sempre mais graça fazer piadas) comiam e calavam, ou protestavam, mas era por carta e aquilo nem chegava aos comediantes. Bons tempos. Agora as redes sociais vieram dar voz a toda a gente e desequilibraram a balança de poder que nos deixava sempre num bonito e justo pedestal hierárquico.

Dá-me esperança ver que há gente com cabeça no sítio e que não se verga ao politicamente correcto e wokismo, com medo da cultura de cancelamento (que eu sei que não é bem cancelamento porque ninguém fica mesmo sem trabalho ou dinheiro, mas mesmo assim as críticas são chatas), sejam comediantes, políticos, ou CEOs de proteína sintética. E até nesta última polémica, os liberais foram logo para as redes sociais defendê-lo e mostrar que a liberdade de expressão dele é mais importante que os direitos das mulheres, e que as pessoas não devem usar a sua liberdade de expressão para se insurgir contra ele porque é injusto.

Pode parecer confuso, mas vocês chegam lá.

Fica aqui todo este tema para vossa reflexão. Percebam que devem conter a vossa liberdade de expressão para que nós possamos usar a nossa na sua plenitude. Só assim a comédia vive.

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