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Adivinhem que preconceito vem para jantar!

Naquele ambiente descontraído, rodeado de portugueses brancos, a partilha da minha pertença moçambicana foi recebida com uma frase que nunca me saiu do sistema. “Vi logo que não eras de cá, por causa do teu sotaque”.

Crónica 74
29 Setembro 2021

Certa noite, há uns bons dez anos, jantava no Bairro Alto com um grupo de ligação espontânea. Daqueles que se vão formando a partir do amigo que encontra outro amigo que, por sua vez, combinou com outros amigos. Como em tantas outras interacções do género, nessa ocasião eu era a única negra à mesa.

Nada de extraordinário para quem, a partir de determinada etapa da vida – sobretudo por força do círculo profissional –, se familiarizou com a perniciosa condição de ser a excepção à regra da maioria branca.

Mas, voltando ao jantar….A certa altura, não me consigo recordar a que propósito, a minha origem veio à baila.

De novo, nada de extraordinário. Sempre fiz questão de me apresentar como moçambicana, escolha que – percebi mais tarde –, é indissociável de uma necessidade de afirmação positiva, construída em contraponto à exclusão que senti desde o início da minha vida escolar.

Posso dizer, por exemplo, que, no meu percurso estudantil, nunca me esquecerei do comportamento descaradamente discriminatório de alguns professores. Como a stôra de Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social que, no primeiro dia de aulas, pediu a todos os alunos que desenhassem o mapa de Portugal de memória. O exercício foi acompanhado de uma deambulação da professora pelas carteiras, cumprida com dicas de melhoria e incentivos. Eu, a única negra da turma, fui também a única a ficar de parte.

Apesar da agressão, naquela altura eu ainda resistia à ideia de que um professor pudesse ser racista, porque associava racismo a ignorância, e no entendimento que tinha do mundo, ter estudos protegia-nos de sermos ignorantes. Aprendi com a vida que não, da mesma forma que sei hoje que aquela professora nunca me aceitou. Limitou-se a tolerar a minha presença, imagino que em linha com as minhas boas notas e participação nas aulas.

Mas, vamos ao jantar. Naquele ambiente descontraído, rodeado de portugueses brancos, a partilha da minha pertença moçambicana foi recebida com uma frase que nunca me saiu do sistema. “Vi logo que não eras de cá, por causa do teu sotaque”.

Paralisada no enorme desconforto que senti naquele momento, perdi a reacção. “Como assim, sotaque?”. Até se poderia dar o caso de o ter, não haveria nenhum mal nisso, mas que sotaque?

A partir daquele instante, o jantar descontraído de início de noite tornou-se indigesto. Apenas para mim, sublinhe-se, porque para o resto do grupo serviu-se branquitude à moda da casa…portuguesa, com certeza.

A indiscrição de um jantar

Hoje sei que não voltaria a comer calada, exactamente como tive a oportunidade de fazer, não muito tempo depois, num jantar em Luanda.

Lembro-me que nessa ocasião discutia cinema com um grupo de colegas, em concreto um ciclo de filmes protagonizado pelo actor Mark Ruffalo, que estava em exibição num canal por cabo.

Entre elogios à versatilidade e talento de Ruffalo, de repente alguém verbalizou o incómodo com algumas cenas do filme “Um coração normal”, por serem “demasiado explícitas”. Quis saber de onde vinha o desconforto, e o discurso homofóbico não tardou a saltar para a mesa. Afinal, as cenas só eram “demasiado explícitas” por envolverem casais gay.

Revisito a experiência de Luanda, tal como a do Bairro Alto, e constato que, infelizmente, os preconceitos ficaram por digerir. Justamente como aconteceu quando uma visita de casa dos meus pais, do baixo da sua masculinidade tóxica, sugeriu que, algures no meu percurso, a via académica deveria ter sido encurtada. “Mulher que estuda muito, depois fica esquisita…a escolher muito o homem”, explicou, preocupado com o meu alegado “excesso de estudos”, evidenciado na forma “abusiva” como o confrontava.

Poderia continuar aqui a “apurar” as discriminações que já encontrei à mesa (e fora dela), e que me impediram de saborear várias refeições. Em vez disso, deixo aqui um convite à digestão colectiva: Portugal inteiro deve ver o programa televisivo Jantar Indiscreto.

Mais do que trazer preconceitos para a mesa, o formato coloca-os em pratos limpos, permitindo a quem vive a discriminação na pele, que a possa partilhar na primeira pessoa.

A receita é produzida pela Muxima Bio, com uma equipa inclusiva de consultores e de produtores de conteúdos, na qual tenho a felicidade de estar incluída.

Além de uma conversa que ajuda a mastigar estereótipos e vieses, o “Jantar Indiscreto” serve-nos uma experiência social que destapa preconceitos internacionalizados, ao sabor de um por cada programa, até um total inicial de seis episódios.

O menu estreou-se no passado dia 16 de Setembro com a ciganobofia como prato principal, e dá-se a provar todas as quintas-feiras, a partir das 23h, na RTP2.

Só para quem tem estômago, e aceita fazer reserva contra todas as formas de discriminação.

A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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