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O caso de Pablo González expõe a hipocrisia do Ocidente sobre jornalistas presos

Há dois anos que a Polónia encarcerou o jornalista Pablo González numa prisão de segurança máxima, argumentando tratar-se de um espião russo. Mas não apresentou até agora qualquer prova nem o acusou formalmente. É uma mensagem a qualquer jornalista que queira cobrir a guerra de forma independente.

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29 Fevereiro 2024

Quatro dias separam o início da invasão russa da Ucrânia da detenção do jornalista Pablo González pelas autoridades polacas. Há dois anos que a Polónia o tem detido numa prisão de segurança máxima argumentando tratar-se de um espião russo, mas não apresentou até agora qualquer prova nem o acusou formalmente. É uma mensagem a qualquer jornalista que queira cobrir a guerra de forma independente.

O jornalista especializado no território pós-soviético foi uma das centenas de repórteres que chegaram à Ucrânia depois do primeiro aviso dos Estados Unidos de que a Rússia poderia invadir o país da Europa de Leste. O primeiro aviso surgiu a 3 de dezembro de 2021 no Washington Post. González publicou reportagens sobre a situação no Donbass e, a 6 de fevereiro, foi convocado pelas forças de segurança ucranianas: pediram-lhe que se apresentasse em Kiev. Assim fez: foi interrogado por várias horas e acusado de ser pró-russo. Foi detido e o seu material confiscado.

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A convocação das secretas aconteceu depois de, no início de fevereiro, ao cobrir militares ucranianos em exercícios, González ter demorado quase uma hora a entrar em direto para o canal espanhol La Sexta, filmando no fundo os exercícios militares. Os soldados ucranianos desconfiaram, pediram-lhe o telemóvel, fotografaram a sua identificação e passaram-na às secretas ucranianas.

Nas quatro horas que o interrogatório durou, os agentes das secretas ucranianas focaram-se nas suas ligações ao jornal basco Gara, sucessor do Egin, antigo jornal nacionalista basco, e por ter um cartão de crédito da Caja Laboral, uma união de crédito basca. Foi acusado de ter visões pró-russas e “convidado” a sair da Ucrânia, sem que qualquer ordem formal tenha sido emitida.

González ainda tentou resolver a situação contactando a embaixada de Espanha em Kiev, mas sem efeito. O jornal espanhol Público, para onde González escrevia, também tentou negociar o seu caso com o Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol, mas, mais uma vez, sem sucesso. Ao mesmo tempo, elementos da secreta espanhola, o Centro de Inteligência Nacional (CNI), contactaram amigos e familiares do jornalista, questionando-os sobre as suas supostas ligações à Rússia e acusando-o de passar informações ao Estado de Vladimir Putin – a acusação de espionagem tem sido, ao longo da história, uma das mais comuns contra jornalistas em zonas de guerra.

Sabendo não estar seguro, González saiu de Kiev um dia depois do começo da invasão russa em direção a Varsóvia. Instalado na capital polaca, o jornalista dirigiu-se depois para a fronteira polaco-ucraniana para cobrir o fluxo de refugiados, onde dezenas de outros jornalistas já se encontravam. Até que, a 28 de fevereiro de 2022, agentes das secretas polacas entraram pelo seu quarto de hotel na cidade de Przemysl. Foi detido e acusado (não formalmente) do crime de espionagem, contemplado no artigo 130.º 1. do Código Penal polaco. Se for condenado, pode receber uma sentença de um a dez anos de prisão.

Uma das principais “provas” apresentadas pelas autoridades polacas até ao momento foi a apreensão, aquando da sua detenção, de dois passaportes com fotos de Pablo González: um espanhol e outro russo. Pablo nasceu em Moscovo em 1982, filho de pai russo e mãe russa com ascendência espanhola. Em 1991, os seus pais divorciaram-se. Foi então que Pablo se mudou com a mãe para o país basco, recebendo a cidadania espanhola por ius sanguinis. Passou a chamar-se Pablo González Yagüe no seu passaporte espanhol, enquanto no russo lia-se Pavel Rubtsov, nome herdado do pai.

O jornalista espanhol foi detido e mantido na prisão de Rzeszów, a 400 quilómetros de Varsóvia. No início de março de 2022, o Tribunal Regional de Rzeszów aceitou o pedido de prisão preventiva por três meses do Ministério Público. O jornalista, sentado na sala do tribunal, ouviu a decisão sem que tivesse um advogado ao seu lado e, no início de abril de 2022, foi transferido para uma prisão de segurança máxima, a da cidade de Radom, a cerca de 100 quilómetros de Varsóvia.

Mantiveram-no isolado na cela 23 horas por dia, tendo uma única hora para esticar as pernas no pátio. Foi classificado como “perigoso” e proibido de contactar o seu advogado espanhol e os seus familiares — é casado e tem dois filhos. O cônsul espanhol apenas o pôde visitar uma semana depois de ser detido e uma advogada oficiosa foi-lhe atribuída 16 dias depois, mas acabou por recusar o caso sem ter falado com ele. Aliás, só nove meses depois da sua detenção é que a sua mulher, Oihana Goiriena, conseguiu falar pela primeira vez com ele por telefone.

A prisão preventiva já foi, entretanto, prolongada oito vezes, sem que qualquer acusação tenha sido formada contra o jornalista. Há quase dois anos que Pablo González está detido na prisão de segurança máxima, mesmo depois de o terem deixado de classificar como “perigoso”. Mas o regime de isolamento mantém-se.

“A cela e o banheiro são constantemente vigiados por câmeras, o que causa grande desconforto e sentimento de humilhação pela falta de privacidade”, escreveu o jornalista numa queixa que interpôs junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em setembro de 2022. Mas há mais: o jornalista alega ainda que os guardas prisionais o obrigam a despir-se várias vezes, submetendo-o a revistas muito minuciosas, quando passa o dia praticamente sozinho na cela. Também é obrigado a usar algemas quando sai da cela, seja para comer ou para falar ao telefone com o seu advogado.

O sistema jurídico polaco não impõe limites à prisão preventiva. “A prisão preventiva, mesmo por muitos anos, é comum em casos complexos. Se a pessoa é estrangeira, o Tribunal normalmente considera que há risco de fuga, uma das razões para a prisão”, explicou o advogado polaco Bartosz Rogała, citado pela Federação Europeia de Jornalistas.

Entretanto, o jornal espanhol Público, familiares e amigos do jornalista têm-se desdobrado em ações para exigirem a sua libertação – criaram até uma associação, a Association #FreePabloGonzález. Mas têm embatido num muro de silêncio e de indiferença do governo espanhol e da União Europeia.

A vida pessoal e profissional do jornalista espanhol foi minuciosamente investigada e foram feitas insinuações, sem nunca se apresentarem provas. Uma das mais importantes aconteceu em maio de 2023, quando já estava detido há mais de um ano. Um meio de comunicação social da oposição russa, o Agentstvo, publicou uma notícia em que escreveu que as secretas polacas tinham encontrado documentação que provava que González era um agente do GRU, os serviços de informação militares russos. Esses documentos seriam reportagens escritas sem que estivesse referenciado quem as tinha encomendado ou a quem tinham sido enviadas, se o foram. As reportagens, escreveu o media russo, eram sobre Zhanna Nemtsova, filha do opositor russo Boris Nemtsov, assassinado em 2015 em Moscovo, e pessoas da fundação com o nome do pai que ela tinha fundado.

Mas mesmo essa insinuação, explica o espanhol Público, não é justificação para a detenção do jornalista espanhol por acusações de espionagem e muito menos a violação contínua dos seus direitos mais elementares. É que o artigo 130.º 1. do Código Penal polaco, o do crime de espionagem, refere-se a espionagem contra a Polónia, o que não é o caso. “Quem estiver envolvido em atividades de recolha de informações estrangeira contra a República da Polónia será punido com uma pena de prisão de um ano a dez anos”, lê-se no artigo do Código Penal. Mas a suspeição entre a opinião pública de se tratar de um espião saiu reforçada.

Em outubro de 2023, 14 eurodeputados assinaram uma carta dirigida ao então ministro da Justiça polaco exigindo que os direitos básicos do jornalista fossem respeitados. “Estamos muito preocupados com a situação completamente indefesa de Pablo González, um cidadão europeu que viu direitos básicos sistematicamente violados, como o direito à comunicação telefónica, bem como visitas regulares da sua família e equipa jurídica”, lê-se na carta, citada pelo Publico.es.

A situação de Pablo González é inédita. É o primeiro jornalista cidadão de um Estado-membro da União Europeia detido numa prisão de um outro Estado-membro. Os Repórteres Sem Fronteiras consideram que o seu caso é “incomum e opaco, não há precedentes na UE”.

“É inaceitável que um Estado-membro da UE detenha um jornalista de forma tão arbitrária. Não são só os direitos fundamentais de Pablo González como cidadão e jornalista que estão a ser violados, mas também a liberdade de imprensa e o direito do público a ser informado”, declararam em uníssono a Federação Internacional de Jornalistas, a Federação Europeia de Jornalistas e a Associação de Jornalistas Espanhóis. “Cada dia que González permanece na prisão é um ataque do governo polaco à liberdade de informação, ao direito internacional e aos direitos humanos. O governo espanhol deve exigir a sua libertação imediata e um julgamento justo. A UE deve intervir”, disse o secretário-geral da Federação Sindical de Jornalistas, Agustín Yanel.

Mas a União Europeia nada fez publicamente e o governo espanhol pouco tem feito em prol da libertação de um seu cidadão. Aliás, fica, sempre que pode, em silêncio sobre a prisão de González. Mas, quando o jornalista Evan Gershkovich, do Wall Street Journal, foi detido, a 29 de março de 2023, pelas autoridades russas na cidade de Yekaterinburg, capital dos Urais, o Palácio de Moncloa não perdeu a oportunidade de juntar a sua indignação à de Washington, Bruxelas, Paris, Berlim e por aí fora: foi um dos 50 países que assinou uma carta da diplomacia norte-americana a exigir a libertação do jornalista norte-americano, condenando a sua “detenção injustificada”.

Quando Gershkovich foi detido, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, exigiu a sua “libertação imediata”, enquanto no caso de González o ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, José Manuel Albares, limitou-se a dizer que o jornalista espanhol estava a receber assistência consular. Mais tarde, e com a pressão pública a aumentar, o ministro deu um (muito) tímido passo em frente: pediu a Varsóvia que respeitasse os direitos do jornalista. 

Dois pesos, duas medidas, e assim se degrada a liberdade de imprensa.

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