Luís Filipe Vieira e Ricardo Salgado | Design de Rafael Medeiros
A relação entre Luís Filipe Vieira e o BES ultrapassava as barreiras de uma ligação entre devedor e credor. Em 12 anos, o BES aprovou linhas de crédito no valor de 749 milhões de euros. Ao mesmo tempo, à mesa dos Conselhos de Crédito do banco de Ricardo Salgado misturavam-se financiamentos ao Benfica com os das empresas de Vieira.
Os ponteiros do relógio apontavam para a uma da manhã, no dia 28 de março de 1984, quando Adriano Varela, empresário no ramo dos transportes, recebeu o telefonema com o relato de que um dos seus camiões fora roubado. Do outro lado do telefone falava António Casaleiro, seu motorista.
Acabado de chegar de um serviço em Espanha, Casaleiro pernoitava na alfândega de Alcântara, no dito camião, à espera de novas instruções para levar a carga, quando António Mourato, antigo motorista de Adriano Varela, o interpela, acompanhado por três indivíduos que se faziam passar por agentes da Polícia Judiciária. “Então por aqui a estas horas?”, questionou Casaleiro, acabado de se vestir, que conhecia Mourato.
Os três “agentes”, um deles António Suzano, informam Casaleiro que a viatura ia ser apreendida, e que devia conduzi-la até ao armazém da empresa Cartipneus, em Moscavide. Ou então teria problemas – um deles tinha uma arma.
Luís Filipe Vieira é um dos maiores devedores do Novo Banco, misturou negócios com futebol, moveu influências e rodeou-se de influentes. Foi dono de um império imobiliário cujo modelo de negócio era apenas sustentado em dívida.
Chegados à Cartipneus, Mourato ficaria a cargo de levar avante a façanha. Casaleiro recebe dinheiro por parte dos arquitetos deste extravio para ir para casa, mas antes percebe que Mourato iria dirigir o camião para Matosinhos e telefona ao patrão quando consegue sair de Moscavide.
“Achei estranho. Resolvi entrar em contacto com a brigada de trânsito da GNR, dando-lhes conhecimento do facto”, conta-nos Adriano Varela.
A GNR age prontamente, intercepta Mourato em Pombal e Varela é chamado à esquadra, nas Janelas Verdes, Lisboa, para formalizar a queixa, entregar a documentação da viatura e proceder à sua devida restituição.
“Para espanto meu vejo o senhor Luís Filipe Vieira, com papéis na mão”, estranhou Varela, que conhecia o então empresário dos pneus e com ele já tinha tido outra celeuma. “Ele foi lá entregar [os documentos] porque ia cobrar os impostos da empresa, relativos ao imposto de camionagem”, conta.
Adriano Varela, na altura dono da Transportes Internacionais e Mercadorias, tinha comprado as quotas da empresa de transportes do industrial José Luís Gama, de Arganil, amigo de Luís Filipe Vieira. Atreladas às quotas viriam os camiões. Mas Gama assim não o entendeu.
Sentindo-se injustiçado e querendo cobrar a alegada dívida de Varela, Gama contacta Luís Filipe Vieira. O então empresário dos pneus persuadiu o industrial a contratar Suzano, especialista em cobranças difíceis, a se apropriar do camião.
Vieira tinha a documentação relativa à cobrança de impostos do veículo, pois, quando Varela mudou a sede social da empresa, não fez logo a alteração no título de propriedade. Por isso, as cartas das finanças iam parar à morada dos escritórios de Gama.
“Ele [Vieira] não era cobrador, mas intitulou-se como tal”, relata Varela. “O objetivo deles era localizar os camiões e entregá-los às autoridades, mas também não foi isso que aconteceu: eles localizaram o camião, que estava em frente das instalações da guarda fiscal, tiraram-no daí para levar para umas instalações da Cartipneus. Mais tarde vim a saber que era propriedade do senhor Vieira e de outros sócios.”
Adriano Varela ainda hoje se indigna pela forma “violenta” dos métodos empregados por Suzano e Vieira e, resignado, diz que “estes problemas deveriam ser resolvidos nos meios próprios”. “Mais tarde confirmou-se que o senhor Vieira apresentou esse senhor Suzano já com essa função: um homem que conseguia resolver tudo com violência física.”
Todos os atores desta artimanha foram condenados, o ex-presidente do Benfica a 20 meses de prisão efetiva, em julho 1993, tal como o senhor Gama. Nunca cumpriram pena porque beneficiaram de duas amnistias, valendo-lhes o perdão integral das penas de prisão.
“Penso que a única vez que [Luís Filipe Vieira] foi condenado foi neste processo”, nota Adriano Varela.
Anos mais tarde, e 68 dias depois de se tornar diretor desportivo do Benfica, em 2001, a história chega aos ouvidos de Pedro Guerra, então jornalista de O Independente.
“O camião é um caso da vida dele bem jovem”, defende o polémico comentador encarnado, ainda um acérrimo defensor de Luís Filipe Vieira. “Ele é um homem muito prático, não tem muita paciência para formalismos.”
É com esta história que Pedro Guerra conhece Luís Filipe Vieira, fizeram amizade e cruzaram-se depois quando foi criada a Benfica TV. “Ainda lhe chamo presidente Luís Filipe Vieira”, congratula-se.
“Foi uma coisa que ele fez na altura, bem mais jovem [tinha 35 anos]. É uma coisa que ele não faria obviamente. Era daquelas coisas que se fazia, não é? Acho que ninguém pode olhar para Luís Filipe Vieira por causa disso. É uma história ridícula. Ele foi condenado, mas é uma história ridícula”, defende o comentador benfiquista.
Vieira foi o único, dos seis condenados, que não mostrou arrependimento na altura da condenação. Volvidos oito anos, e acabado de se tornar o homem forte do futebol encarnado, manteve a posição: estava a ajudar um amigo a cobrar uma dívida.
“É a justiça que temos”, foi a resposta que Vieira deu a Pedro Guerra quando confrontado pelo jornalista para a realização da peça. Vieira, diz Guerra, na altura não percebeu o interesse da notícia. Já Varela, o lesado, não teve direito a ser ouvido pelo então jornalista de O Independente.
Esta história é apenas um capítulo do longo currículo de um dos maiores devedores do Novo Banco, que misturou negócios com futebol, moveu influências e rodeou-se de influentes, que foi dono de um império imobiliário, cujo modelo de negócio era apenas sustentado em dívida. Até essa torre de financiamentos desabar.
A SIC recebeu um numeroso conjunto de documentos sobre as empresas de Luís Filipe Vieira e o BES – mais de 1000 - e integrou o Setenta e Quatro numa equipa de investigação que inclui duas estudantes de Jornalismo e um de Economia. Começámos a mergulhar na documentação em maio deste ano, dois meses antes da detenção de Luís Filipe Vieira.
Estes documentos indicam uma relação de crescente proximidade entre o BES e Luís Filipe Vieira, a partir da entrada do empresário no Benfica, até à resolução que ditou o fim do império dos Espírito Santo.
Esta é a história de um testa de ferro.
“Infelizmente faço mais falta ao futebol do que o futebol faz a mim”, foi como Luís Filipe Vieira, indignado, se apresentou no Os Donos da Bola, em 1998. “Não tenho pena que nem sou homem de futebol. Resolvendo o caso do Alverca vamos todos embora.”
Vieira, presidente dos alverquenses na altura, encontrava-se no programa da SIC devido ao estatuto do Alverca como clube satélite do Benfica, numa altura em que se punha em causa a subida do clube ribatejano à Primeira Liga por se considerar que, na prática, tratava-se de uma equipa B do clube da Luz. Afinal, os encarnados emprestaram quase 30 jogadores entre 1995 e 2001. Mas a ameaça acabaria por cair por terra e o Alverca subiu à Primeira Liga nesse mesmo ano.
No início da década de 1990, o Futebol Clube de Alverca era um clube muito modesto de uma pequena cidade às portas de Lisboa. Então na II Divisão B, o presidente do Alverca, Manuel Ribeiro, decide juntar os empresários mais influentes da cidade ribatejana para colocar o clube noutros voos.
Luís Filipe Vieira havia-se agigantado como homem de negócios na então vila ribatejana, depois de ter fundado a empresa de construção Obriverca com o seu amigo e sócio Eduardo Rodrigues, em 1985. E por isso ambos foram convidados a entrar na estrutura do clube, como gente influente que eram de Alverca.
Rapidamente Manuel Ribeiro sai de cena e, no dia 29 de maio de 1991, Luís Filipe Vieira é eleito presidente do clube.
Desde muito cedo, Vieira, de modestas origens, sempre soube circular entre as elites e tirar proveito delas. Em sete anos, Vieira alavanca o Alverca da II Divisão B para a Primeira Liga, à custa da relação especial que formalizou como clube satélite, primeiro, com o Sporting, e, depois, com o Benfica.
O Alverca, sem Vieira no leme, acabaria por desaparecer do futebol profissional em 2005. A Obriverca, por sua vez, entraria num processo de insolvência, em 2017, afundada numa dívida de 392,187 milhões de euros.
Descrito na imprensa desportiva da época como um homem fogoso e apaixonado pelo risco, a sua aparente história de sucesso levou o antes empresário dos pneus a ser namorado pelo Benfica de Manuel Vilarinho, em 2001. Mesmo depois de cair com estrondo a detenção de João Vale e Azevedo, no dia 16 de fevereiro de 2001.
Vale e Azevedo era acusado de se ter apropriado de uma tranche da transferência do guarda-redes russo Sergei Ovchinnikov, que antes de jogar pelo Alverca tinha calçado as botas pelos encarnados, para um ano depois de passar pelos alverquenses, vestir a camisola dos dragões. O clube ribatejano era uma conhecida porta giratória de jogadores entre o Benfica e o Futebol Clube do Porto.
As acusações contra Luís Filipe Vieira não tardaram a chegar e, no dia seguinte à detenção de Vale e Azevedo, Vieira defendeu-se negando qualquer envolvimento no caso. “Assinou um contrato completamente livre, no qual havia uma permissão de sair”, jurou o então presidente do clube ribatejano, negando qualquer relação entre o Alverca e o Benfica na transferência. “O Alverca não pagou nada a ninguém.”
No dia 25 de maio, Vieira é anunciado como diretor desportivo com plena autonomia no futebol, destronando a antiga glória benfiquista António Simões. Vinha “em socorro”, como admitiu na altura Manuel Vilarinho, presidente dos encarnados, que enfrentavam um enorme buraco financeiro. O mais recente homem forte do futebol encarnado tinha todo o apoio da banca, pois “merecia a confiança do sector bancário”, como admitiu o próprio Vieira na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
De 2002 até à queda do império de Ricardo Salgado, esta camaradagem do BES valeu a Luís Filipe Vieira financiamentos aprovados num total de 749 milhões de euros.
A metamorfose de Vieira no início do milénio, do Alverca para o Benfica, do ramo da construção para a promoção imobiliária, teve o BES como patrono desde os seus primórdios – e os trajetos desportivos e imobiliários conjugaram-se.
A Inland, nesta altura, era a cabeça do império e havia começado a diversificar a sua carteira desde o início dos anos 2000. Mas 24 dias antes de ser apresentado como o gestor do futebol benfiquista, no dia 3 de maio de 2001, Luís Filipe Vieira cria uma das empresas mais importantes na sua ligação com o banco de Ricardo Salgado: a Onlyproperties.
O plantel de Luís Filipe Vieira na sua aventura imobiliária – em praticamente todas as empresas - repete-se ao longo dos anos: os seus sócios costumam ser Vanda Vieira, a esposa de Vieira; Tiago Vieira, filho; Almerindo Duarte; e, a partir de certa altura, José Gouveia, diretor financeiro da Promovalor.
Menos de um ano depois, no dia 10 de abril de 2002, anexo a um fax do BES vem um pedido da Onlyproperties: “um apoio para aquisição dos terrenos da Petrogal, no montante de 56 milhões de euros”.
Nove dias depois, o administrador António Souto aprovou a operação no Conselho Financeiro de Crédito do banco do “Dono Disto Tudo” juntando 25,76 milhões em garantias, perfazendo 81,76 milhões de euros, dando ainda outra mãozinha à empresa: um descoberto eventual de 19,61 milhões de euros. A braços com esta operação, foram também aprovadas operações de crédito neste dia… a favor do Benfica.
Ao todo, dos 120 milhões de euros aprovados neste conselho, 105 foram parar ao universo do presidente benfiquista.
António Souto era o responsável pelas áreas de banca de empresas e recursos humanos e é uma personagem omnipresente na aprovação das operações de crédito do grupo de Luís Filipe Vieira, normalmente carregadas de irregularidades. Em 32 das 45 Conselhos Diários de Crédito que analisámos até à queda do BES, apenas constava uma assinatura de um administrador a aprovar os financiamentos às empresas de Luís Filipe Vieira – eram precisas três. A assinatura era quase sempre de António Souto.
Ironicamente, Souto também era responsável pelo departamento de compliance.
Neste período, o BES vai financiando Luís Filipe Vieira à medida que este vai ganhando espaço na Luz e gradualmente substituindo Manuel Vilarinho, relegado a uma figura de segundo plano no clube encarnado. Começam a caminhar de braços dados.
Também é em 2002 que Luís Filipe Vieira compra Verdelago, um dos maiores projetos do antigo empresário da construção financiado – 270 milhões – por um sindicato bancário composto pelo BES, pela Caixa Geral de Depósitos e pelo Banco Comercial Português. Uma história que vale uma peça por si própria no Setenta e Quatro, tal como o empreendimento de Benagil, ambos situados no Algarve (a peça sobre Benagil será publicada no dia 26 de novembro).
Chegamos ao dia 24 de janeiro de 2003, ano em que Vieira é eleito presidente do Benfica com 90% dos votos e é visto como o “salvador da pátria benfiquista”, e o BES despeja 76 milhões de euros nos cofres da Inland, Expoland, Parque Expo 98 e Rockbuilding, nas empresas do empresário.
Menos de três meses depois de Vieira se tornar presidente dos encarnados, outra reunião do Conselho Diário de Crédito do BES mostra-nos que este plafond de 76 milhões de euros é aumentado para 121 milhões de euros.
Nesta mesma reunião, de 28 de janeiro de 2004, foi aprovado um financiamento à Benfica SAD e uma alteração no prazo de reembolso de um crédito concedido à empresa encarnada que geria o Estádio da Luz.
O sobe e desce no plafond de crédito, a extensão dos prazos ou a sua mera alteração, as mudanças nas taxas de juro e alterações nos spreads, as modificações nas garantias e nos avais, entre outras coisas, foram persistentes entre 2002 e 2018 (já com o Novo Banco), demonstra a documentação. Quantas vezes conseguiu renegociar um contrato de crédito, caro/a leitor/a? Luís Filipe Vieira teve direito a 50 aditamentos durante este período.
Foram só precisos 90 dias, após a reunião que misturou financiamentos para a catedral encarnada e empréstimos para as empresas do presidente do clube, para o Grupo Espírito Santo e Luís Filipe Vieira trocarem anéis de noivado. No dia 27 de abril, é criado o Fimes Oriente, um fundo imobiliário, que junta a Gesfimo e o presidente do Benfica, com um capital social de 25 milhões de euros.
“Percebo que há ali uma relação entre aquela empresa e o grupo ES que é antiga, que é longa. Percebe-se ali que vai havendo favores de uma parte, depois de outra”, diz Cecília Meireles, deputada do CDS.
“Acho que Luís Filipe Vieira foi testa de ferro de Ricardo Salgado”, diz Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda. “Aliás, Ricardo Salgado construiu uma enorme teia à sua volta com vários elementos e cada um cumpria as suas funções.”
O Fimes Oriente compra logo um prédio a Luís Filipe Vieira nesse ano: o edifício Batista Russo, erguido na década de 1960, em ruínas há uns anos na altura da data da aquisição por parte do fundo, por 16,46 milhões. Comprado com dinheiro do BES, amortizado com dinheiro do Grupo Espírito Santo.
Anexo a este parecer, na folha seguinte, percebemos a razão para o BES desejar associar-se a Luís Filipe Vieira: alterar o uso dos terrenos, “ou seja, a sua transformação de industriais ou mistos, em terrenos aptos à construção de habitação e serviços”, revela-nos o documento, de cinco dias antes da criação do Fimes Oriente.
Este noivado era profícuo para ambas partes. “Luís Filipe Vieira queria crescer e só podia crescer com dívida. O BES queria parceiros de negócios, testas de ferro obedientes e que tivessem interesse em lucrar com a situação”, acrescenta Mortágua.
“Relaciono com a notoriedade e capacidade de influenciar a opinião pública”, diz-nos Cecília Meireles. “Se isto tem alguma relação com o futebol, a notoriedade, o facto de exercer influência pública, pode ter”, acrescenta a deputada do CDS, falando também das várias reestruturações de que as empresas de Luís Filipe Vieira foram alvo.
O parecer comercial do BES referia-se principalmente aos terrenos da Petrogal – separados em Olivais Norte, Olivais Sul, e terrenos da Matinha, a galinha de ovos de ouro do Fimes.
Com o aumento do capital social do fundo para 117 milhões, Luís Filipe Vieira – que pediu um aumento de 22 milhões de euros numa linha de crédito da Inland para comprar as novas unidades de participação – coloca no saco do Fimes os terrenos de Olivais por cerca de 49 milhões de euros. E aproveita para amortizar 30 milhões de uma dívida – das muitas que já tinha ao BES – de 40 milhões de euros para a compra destes terrenos.
“Face ao exposto”, justifica o parecer comercial do BES de 25 de julho de 2005. que dava conta do pedido de empréstimo por parte de Luís Filipe Vieira para comprar unidades de participação durante o aumento de capital do Fimes, “e ainda tendo em atenção as pessoas envolvidas, damos parecer favorável ao proposto.”
No dia 29 do mesmo mês, pela pena de António Souto, o Conselho Diário e Financeiro de Crédito aprovava a operação, a braços com financiamentos a mais três das suas empresas e a prorrogação de um reembolso da Benfica SAD.
Paralelamente ao dinheiro concedido às empresas de Luís Filipe Vieira, o banco de Ricardo Salgado foi apadrinhando o Benfica ao longo dos anos. Em 2005, os encarnados quebram o jejum de 11 anos e ganham o campeonato nacional.
Nunca saberemos, porém, se o conseguiriam sem o empurrãozinho do BES. Simão Sabrosa, a joia da coroa do plantel encarnado e um dos obreiros na quebra deste jejum, foi adquirido com dinheiro do banco.
E, certamente, os 18 anos de Luís Filipe Vieira ao leme da nação benfiquista não teriam sido os mesmos sem o auxílio do BES: entre 2006 e 2014, o banco emprestou ao Benfica 335,3 milhões de euros, dizem-nos os relatórios de gestão da SAD encarnada.
No ano seguinte, em 2006, o fundo imobiliário fechado Fimes Oriente absorveria mais dois imobiliários de Luís Filipe Vieira – um prédio na Campanhã, Porto, e um terreno em Cabo Ruivo, Lisboa – por mais de nove milhões de euros.
É ainda neste ano que a primeira grande parcela dos terrenos da Matinha é vendida ao Fimes por Luís Filipe Vieira. No ano seguinte, em outubro de 2007, o presidente do Benfica compra outra parcela e vende-a ao fundo no mesmo dia.
A venda total dos terrenos da Matinha só se finalizaria em 2010 e totalizaria mais de 51 milhões de euros, que, somados com os terrenos de Olivais Norte e Olivais Sul, também parte dos terrenos que viriam fazer parte do Plano de Pormenor da Matinha, totalizariam 100 milhões de euros.
“Comprámos sem saber o que lá se poderia fazer. Foram financiados pelo BES, comprámos ao fundo Fimes – nós tínhamos 55% e eles 45%. Foi tudo financiado pelo BES, eles é que puseram lá o dinheiro todo. Apareci para fazer o negócio à minha maneira”, admitiu Luís Filipe Vieira na CPI, acrescentando que ficou em quarto no concurso: “Comprei aquilo a olho fechado".
Para fazer o negócio à sua “maneira”, Luís Filipe Vieira largou quase 134 milhões de dinheiro do BES na compra dos terrenos que ia vendendo ao Fimes. E, para ser sócio deste fundo, o BES emprestou-lhe, pelo menos 69,7 milhões de euros.
O Fimes é dos exemplos mais paradigmáticos deste noivado entre Ricardo Salgado e Luís Filipe Vieira. Está, contudo, longe de ser o único.
Mas, primeiro, demos mais um toque de bola. Vieira funde o fato de gestor desportivo com o de empresário do ramo imobiliário e, no dia 22 de setembro de 2006, inaugura o centro de estágios do Seixal ao lado de Carlos Santos Ferreira, presidente do conselho de administração da Caixa Geral de Depósitos.
“É normal [conciliar a parte imobiliária com o futebol] porque é a praia dele”, afirma Pedro Guerra.
Inaugurado com um total de 15 hectares, seis relvados e um centro de alojamento com capacidade para seis camas, o centro de estágios é visto pelos adeptos como o maior feito da era vieirista. “A academia é a verdadeira mina de ouro”, exalta Pedro Guerra.
O aclamado centro de estágios teve a indispensável ajuda do presidente da Câmara do Seixal da altura, Alfredo Monteiro, comandante comunista desta câmara durante largos anos. Monteiro, que não quis falar connosco, aparece recorrentemente na lista de honra da catedral, que verificámos.
No ano seguinte, final de 2007, Luís Filipe Vieira, que abria uma empresa para cada empreendimento, arruma a casa criando a Promovalor SGPS, a holding mãe. Entre novembro e dezembro desse ano, cria seis empresas e absorve cinco na Promovalor.
A Rising Investimentos, que vem do embrião da Promovalor, é a empresa que organiza este arrumar de casa. A Inland-Promoção Imobiliária, até lá a metrópole do império imobiliário do empresário, é submersa na Promovalor em 2009. Estava dado o tiro de partida para voos mais altos.
“Isto é, de facto, um capitalismo de favor de pessoas que circulavam bem nos corredores de poder, seja ele político, económico, social, de influência na opinião pública, e aproveitaram esse facto para fazer negócio”, diz Cecília Meireles.
“Se olharmos apenas para a Promovalor, ela nunca deu lucro, nunca foi sustentável. A Promovalor é desde a sua criação uma empresa que vive exclusivamente de dívida”, nota a deputada Mariana Mortágua. “É um modelo de negócio. O pressuposto do negócio é que a dívida continue eternamente.”
“Ele [Luís Filipe Vieira] vivia o Benfica a 100%”, defende Pedro Guerra. “Os negócios dele acabaram por ser afetados por isso.”
Nesta altura, a Promovalor tinha sob a sua alçada um milhão de metros quadrados de área bruta de construção. Mas pouca coisa edificada.
Um dos poucos exemplos de sucesso do grupo é o projeto Santa Catarina, financiado pelo Banco Popular, que não se pode exatamente dizer que foi edificado, mas sim reabilitado. Perto da Bica, na Calçada do Combro, Lisboa, Santa Catarina foi um projeto de habitação de luxo. Iniciado em 2007 pela Avanço – Promoção Imobiliária (participada da Inland), concluído em 2010, este empreendimento premiado representa um total de 4,5 mil metros quadrados, com 19 fogos habitacionais.
O Art’s Business Center já enche um pouco mais o olho, citado ao longo dos anos nos documentos do BES como o grande exemplo de sucesso do grupo para justificar os milhões de créditos que ia colocando nos bolsos das empresas de Luís Filipe Vieira.
Trata-se de um empreendimento icónico e premiado no Parque das Nações, marcado pelo mural em azulejo pintado com alusões à banda desenhada norte-americana, da autoria de um famoso pintor islandês, desenhado pelo arquiteto Frederico Valsassina, que agrupa um hotel de com 300 quartos, 23 mil metros quadrados de escritórios e 1100 lugares de estacionamento.
Com empresas de renome alojadas no escritório, em 2008 este projeto foi colocado no fundo alemão CS Euroreal, do Credit Suisse Asset Management. Curiosamente, uma instituição com quem Ricardo Salgado tinha relações privilegiadas.
Mas são acanhadas frações do milhão de metros quadrados detidos pelo grupo, exíguos comparados, por exemplo, com o durante muitos anos suspenso projeto Verdelago, em Castro Marim, no Algarve. Este empreendimento previa ter um Hotel de cinco estrelas (197 quartos); 340 fogos (233 apartamentos, 86 townhouses e 21 vilas); spa, piscina interior, centro de congressos, campo de golfe, piscinas, ginásio, restaurantes e lojas.
Para nos desviarmos do BES, sem nos afastarmos muito desta linha cronológica mas para darmos mais um exemplo do teor dos empreendimentos turísticos do grupo de Luís Filipe Vieira, vejamos o caso do projeto High Castle, uma sociedade constituída no arrumar de casa de 2007, pela Rising Investimentos.
Vieira movia-se com sucesso em localidades isoladas, deixadas à sua mercê e sedentas de investimento.
Imagine-se Almodôvar, no baixíssimo Baixo Alentejo, a um dedo do Algarve, um concelho isolado com uma população de 6700 pessoas, envelhecida, com 253 idosos por cada 100 jovens. Imagine-se uma herdade com 230 hectares, com poucos acessos, no meio de coisa nenhuma, escassa de água mas enlameada, repleta de árvores solitárias e nuas, ocupada por bovídeos dispersos e humildes vivendas.
Em 2011, o limite de crédito que a Promovalor tinha junto de toda a banca chegava a valores de 860,9 milhões de euros e a dívida da Promovalor ao BES estava nos 432,4 milhões de euros.
Imagine-se um resort que acrescente 50% à população de Almodôvar, um campo de golfe com 18 buracos, um centro desportivo no meio da herdade, um hotel e seis aldeamentos turísticos.
Foi para isso que Luís Filipe Vieira bateu à porta do BCP e pediu dez milhões de euros, para comprar a Herdade do Castelo Alto e projetar tamanha incongruência. Almodôvar was Rising.
“Houve essa preocupação [de ser um projeto megalómano]. Nós achávamos que se calhar tinha essa dimensão muito grande. Mas a questão era o que é que a Câmara Municipal, face a essa intenção de investimento, podia fazer”, recorda-nos António Sebastião, presidente da Câmara de Almodôvar, do PSD, quando o projeto foi aprovado.
O sétimo ano deste segundo milénio também foi a data da célebre OPA sobre 60% das ações da Benfica SAD lançada por Joe Berardo, outro grande devedor do Novo Banco caído em desgraça.
No dia 15 de junho, Berardo ofereceu 3,5 euros por cada título, um valor 30% acima da quota de fecho de mercado. “Acredito no trabalho de Luís Filipe Vieira, que tem trabalhado como um escravo”, disse à Lusa, nesse mesmo dia, o empresário madeirense. Vieira, agradecido, foi almoçar com Berardo uma semana depois. Era o dia de aniversário do presidente encarnado.
A Promovalor, constituída em 2007, chega a dezembro de 2009 com uma dívida para com o BES digna de fazer soar todos os alarmes – 328,3 milhões de euros, espalhados por 13 empresas e o Fimes Oriente. O tsunami da crise do subprime vinha do Atlântico com toda a força e aproximava-se ferozmente de Portugal e da Zona Euro.
Destemido, com os limites de financiamento a esgotarem-se (já tinha utilizado 92%), Luís Filipe Vieira decide surfar a onda e pede ao BES um financiamento de 152,8 milhões de euros, de onde saíram 53,2 milhões de euros para liquidar e reestruturar parte das suas dívidas, restando 99,6 milhões de euros de financiamento adicional, a serem pagos em três anos. O BES vai ao cofre e concede-lhe.
António Souto, sempre pronto para gastar tinta da sua pena para ajudar Luís Filipe Vieira, é novamente um dos administradores a aprovar esta reestruturação, no dia 20 de janeiro de 2010.
“Isto é, de facto, um capitalismo de favor de pessoas que circulavam bem nos corredores de poder, seja ele político, económico, social, de influência na opinião pública, e que aproveitaram esse facto para fazer negócio”, diz Cecília Meireles. “Há várias explicações. Uma delas é o modelo económico de alavancagem, que se percebeu os resultados que tinha. Em Portugal, isso foi exacerbado com a aposta em determinados sectores. Havia dívida para comprar o terreno, para construir, para tudo. Chega a um momento em que basta que haja uma desvalorização e já não se consegue fazer face à dívida.”
O tsunami tinha finalmente chegado com a entrada da troika em Portugal, em abril de 2011. Tempos que, porventura, aconselhavam prudência. A cautela, porém, não parece ter sido uma qualidade apreciada nos corredores do BES.
Para conceder crédito, ou para realizar qualquer alteração a um contrato, os bancos devem acompanhar regularmente a situação financeira do devedor realizando análises de risco a cada 12 meses. Uma análise feita por nós, baseada na auditoria realizada pela Delloitte dos créditos da Promovalor entre 2002 e 2014, a que tivemos acesso, encontrou 25 situações em que o BES não cumpriu essa regra.
Mas quatro meses antes de o BES voltar a encher os bolsos das empresas de Luís Filipe Vieira os técnicos do banco tinham feito o seu dever. A análise de risco de 8 de fevereiro de 2011 do Departamento de Risco Global era clara: recomendava um acompanhamento muito próximo à Promovalor e que não fossem equacionados mais financiamentos. Os alarmes tinham finalmente disparado.
Não era para menos. O limite de crédito que a Promovalor tinha junto de toda a banca chegava a valores de 860,9 milhões de euros, e a dívida da Promovalor ao BES situava-se nos 432,4 milhões de euros. Se juntarmos a esta torre de dívida o BCP, a Caixa Geral de Depósitos, o Finibanco, o Banco Popular e o BPN, esse valor escala para os 567 milhões.
Concluídos apenas 240 mil metros quadrados do um milhão de metros quadrados de projetos que tinha em carteira, a Promovalor queria emagrecer para dar um salto ao Brasil, para construir o já famoso hotel em Recife.
O banco de Ricardo Salgado tinha a solução perfeita. Emitiam-se 160 milhões de euros em VMOC (Valores Mobiliários Obrigatoriamente Convertíveis), limpava-se a dívida da Inland e reduzia-se a dívida da Promovalor num total de 143,5 milhões de euros – só tinha de pagar este valor 10 anos depois. Caso contrário, essas obrigações converter-se-iam em capital da Promovalor.
Com esta dieta drástica, a Inland, a segunda maior empresa do grupo, por exemplo, chega a 2012 esquelética: a sua dívida passa de 75,56 milhões de euros para 5,85 milhões de euros. Estes 69,7 milhões de dívida são o valor que a Inland tinha contraído para adquirir unidades de participação do Fimes Oriente.
Mesmo reconhecendo a situação precária do mercado imobiliário português, o documento do BESI fazia projeções otimistas: “Em 2019, após o desenvolvimento dos projectos [sic] que se pretende financiar e a comercialização da maioria dos projectos [sic] do FIMES (excepto [sic] parte da Matinha e Olivais Sul), a dívida do Grupo junto do BES deverá situar-se em cerca de 95 milhões”.
No dia 21 de junho, o Conselho Financeiro de Crédito do BES aprova a operação. António Souto assina por baixo.
“Acho que ele teve acesso a muitas reestruturações que outros empresários não tiveram”, nota Cecília Meireles, que perguntou, durante a audição a Luís Filipe Vieira, se queria “rever a sua afirmação” quando o ainda presidente do Benfica se gabava de nunca ter tido um perdão de dívida. “A dívida manteve-se, foi sempre crescendo, nunca foi cumprida e foi sendo reestruturada.”
“Estes testas de ferro justificam alguns negócios, uns com lucro para o BES, mas outros não têm muita racionalidade económica”, diz Mariana Mortágua.
“Estes testas de ferro justificam alguns negócios, uns com lucro para o BES, mas outros não têm muita racionalidade económica, mas penso que foram cruciais na estratégia de acumulação de poder daquele grupo bancário e da família Espírito Santo através de Ricardo Salgado”, diz Mariana Mortágua. “Luís Filipe Vieira teria os seus interesses próprios, embora sempre dependente da dívida e do financiamento do BES.”
No ano desta reestruturação, 2011, o Plano de Pormenor para o resort da Herdade do Castelo Alto é aprovado em tempo recorde: dois anos. “Teve muito a ver com esta consciência de que os investidores não poderiam esperar 5,6,7,8,9,10 anos para terem decisões sobre os Planos de Pormenor”, confessa António Sebastião. “Os Planos de Pormenor levavam muito tempo a ser desenvolvidos – quatro, cinco, seis anos. Às vezes até mais, este acabou por avançar rapidamente.”
Inquieto, o presidente do Benfica gostava de usar a sua influência para saltar etapas. “Recebi pelo menos um telefonema de Luís Filipe Vieira a dizer: ‘Ó presidente, veja lá se isso anda mais depressa”, confessa o presidente da câmara na altura. “Eu dizia que tínhamos a preocupação de não atrasar, mas tínhamos de responder a algumas normas.”
No entanto, depois de tanta pressa, o projeto fica em banho-maria logo de seguida. “Curiosamente, após a aprovação do Plano de Pormenor”, diz-nos António Sebastião.
A Herdade do Castelo já não é propriedade de Luís Filipe Vieira. Perguntámos a António Sebastião, que ofereceu uma leve resistência em falar sobre os seus contactos com Luís Filipe Vieira, se Almerindo Duarte, o homem que movia os interesses do patrão da Promovalor nos bastidores, tinha alguma relação com os novos proprietários.
“Não sei. Por acaso não disse isso, mas num aniversário qualquer do Luís Filipe Vieira ele trouxe a equipa toda à Malhadinha para almoçar e convidaram-me para ir lá com eles”, conta-nos o antigo líder laranja da câmara da vila alentejana. “O Almerindo Duarte é que me disse isso e fomos lá almoçar.”
“Achei normal na altura porque há um investimento aqui a ser feito, o Plano de Pormenor estava a ser discutido”, defendeu-se António Sebastião, que se recorda perfeitamente da refeição.
Resolvemos visitar a Herdade do Castelo e encontrámos Jaime Guerreiro, pastor de ovelhas que cuida da herdade há 14 anos. “Pagava [a renda] ao senhor doutor Almerindo”, revela-nos, acrescentando que só a pagou durante um ou dois anos. “E depois ele disse: ‘O meu amigo agora deixa de pagar.’ E daí para cá nunca mais paguei (…) Ele disse-me: Limpa a terra, explora à sua maneira e não paga nada.”
“O dono agora é o senhor José António”, diz-nos Jaime Guerreiro.
Só há um José António na vida de Luís Filipe Vieira.
Com Pedro Coelho, grande repórter SIC. Esta reportagem teve a colaboração de Maria Rodrigues, Rita Murtinho, Pedro Sousa Coelho e Diana Matias (SIC).