Miguel Carvalho chega jornalismo

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Miguel Carvalho: “Parte do eleitorado do Chega é resgatável para o ‘lado bom’ da democracia”

O jornalista portuense defende que a crise no jornalismo português também ajudou à ascensão de movimentos e partidos de extrema-direita e minimiza as críticas ao financiamento público da comunicação social: “foi o mercado que nos trouxe aqui”.

Entrevista
1 Fevereiro 2024

Falando aos seus camaradas de ofício, Miguel Carvalho subiu ao palco do V Congresso dos Jornalistas, no Cinema São Jorge em Lisboa e denunciou a “domesticação” do jornalismo por parte de “figuras duvidosas, com capitais não rastreáveis e interesses inconfessáveis”, que “noutras épocas, nem se atreveriam a rondar as redações”. Estávamos no cúmulo da contestação contra os donos do Global Media Group, detentor do Jornal de Notícias, do Diário de Notícia e da TSF, entre outros órgãos de comunicação social, que deixaram os trabalhadores sem o salário do mês de dezembro depois da ameaça de uma “reestruturação” que atiraria até 200 trabalhadores para o desemprego.

Em conversa com o Setenta e Quatro, o jornalista desenvolveu essas e outras ideias sobre as causas e as consequências da precarização do jornalismo português. Passando pela falta de recursos, pela precarização, a despolitização das redações e a perda negligente da sua memória. Critica “a mercearia do capitalismo português” que põe o jornalismo ao seu serviço e o enfraquece até ao osso. Diz-se farto da conversa sobre os alegados e apregoados perigos autoritários trazidos por um hipotético financiamento público ao jornalismo: “mercantilizar o jornalismo não é uma forma de autoritarismo? O mercado não é autoritário?”, questiona.

Miguel Carvalho é jornalista desde 1989. Publicou recentemente os livros Quando Portugal Ardeu e Amália - Ditadura e Revolução. Entre 1999 e 2023 foi grande repórter da revista Visão, onde nos últimos anos se dedicou a investigar os mundos e fundos da extrema-direita, nas suas mais variadas interações mas especialmente a que conseguiu assento parlamentar. Tal descaramento levou a que fosse “denunciado” por André Ventura nas redes sociais e a que, este mês, o partido Chega tenha tentado vedar-lhe a entrada no seu congresso.

Ainda assim, acredita que “parte considerável do eleitorado do Chega é resgatável para aquilo que muita gente considera o ‘lado bom’ da democracia”. Tem-se sentado à mesa com os seus militantes para perceber o que os atrai no partido. Tem visto de perto a “fragilidade política” deixada por um Estado que abandonou o interior do país, deixando as pessoas que lá vivem sem expectativas de uma vida melhor, a remoer as suas frustrações à espera de um bode expiatório que chega na figura do Outro: o cigano, o imigrante. A essas pessoas o Chega “oferece uma narrativa simples, a maior parte das vezes mentirosa”, que deve ser contrariada com maior escrutínio jornalístico: “a crise do jornalismo explica muito da ascensão do Chega”.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

No rescaldo de uma agressão a um jornalista do Expresso, num evento do partido Chega na Universidade Católica, André Ventura disse que os jornalistas teriam de deixar de ser "virgens ofendidas" e "habituar-se a um novo mundo". Preocupam-lhe estas declarações?

É o novo mundo de André Ventura. Obviamente, ele acha mais confortável seguir as narrativas que pode espalhar nas redes sociais. Mas o Chega continuará a ser escrutinado, porque esse é o trabalho do jornalismo e porque deve ser alvo do mesmo escrutínio aplicado aos outros partidos. Foi também o escrutínio que ficou por fazer, em devido tempo, às opções políticas de muitos governos de outros partidos, que ajudou a insuflar o Chega.

Nós [jornalistas] contribuímos para o discurso ruidoso sobre o que é, afinal, aquele fenómeno político. Insistimos despudoradamente no jornalismo de "pingue pongue", pergunta e resposta, sem contraditório, sem aprofundar verdadeiramente as questões colocadas. André Ventura já sabia o que queria e nós ainda andávamos com uma lanterna à procura de saber como lidar com aquilo, achando que "isto" nunca nos iria acontecer.

Havia o mito da imunidade à extrema-direita, sustentado por teorias românticas sobre a memória do fascismo.

E hoje ainda andamos para aqui com uma lanterna. Aquilo em que o Chega se apoia para criar adesão e atrair gente não precisa do jornalismo para nada. Mas o jornalismo continua a precisar de ir ao fundo da questão, para expor as contradições, para tentar perceber se aquilo é, como eles gostam de dizer, um partido anti-sistema ou se, afinal, reproduz ao cubo o pior que há no sistema. Isso não se faz sendo pé-de-microfone.

"Quando Ventura diz que "leva pancada", não sei ao que se refere, mas há gente na nossa área que opina sobre o Chega tendo por base preconceitos que não deveria ter. Eu não confundo Ventura e o seu núcleo duro com a base eleitoral do Chega."

A velocidade do ecossistema em que eles se movem é vertiginosa. Por muito fact-checking que façamos, mais ou menos em tempo real — como fez o Expresso no último congresso —, é impossível acompanhá-los. Principalmente com as redações vazias e depauperadas. A crise do jornalismo explica muito da ascensão do Chega, seja em matéria de recursos — humanos, técnicos ou materiais — como em matéria de opções editoriais.

Nesse mesmo discurso, Ventura afirmou que o Chega também estava sempre a "levar pancada" nos jornais. A "pancada" aqui é uma hipérbole para designar esse escrutínio?

É possível que sim, mas nem acho que haja assim tanto escrutínio. Não foram muitas as pessoas que tiveram o privilégio de dispor de tempo para escrutinar um movimento político como o Chega e conhecê-lo por dentro. Poucos fizeram esse esforço. Uma grande parte dos jornalistas que cobriram o último congresso, por muito louváveis que sejam e por muito esforço que façam, não entraram lá despidos de preconceitos como se estivessem a cobrir um congresso do PS ou do PSD.  

Esse padrão não pode ser aplicado ao Chega. Falo com conhecimento de caso. Invisto na investigação ao Chega porque a Visão me permitiu, até à minha saída, o privilégio de ter o tempo e o espaço de a poder aprofundar. Conheço a militância do Chega como poucas pessoas. Tenho documentos internos que me permitem fazer cruzamento de dados mais que suficiente para conhecer aquela realidade sociológica.

Quando André Ventura diz que "leva pancada", eu não sei ao que se refere, mas há gente na nossa área que opina sobre o Chega tendo por base preconceitos que não deveria ter. Eu não confundo André Ventura e o seu núcleo duro com a base eleitoral do Chega. E até creio que isto é uma posição minoritária entre os jornalistas. Conhecendo, em muitos casos, as opções que levaram muitas pessoas à filiação no Chega, posso afirmar que parte considerável do eleitorado do Chega é resgatável para aquilo que muita gente considera o "lado bom" da democracia. 

Os partidos tradicionais oferecem uma ideologia consensual em que alguém se consegue facilmente encaixar. Mesmo achando que o seu partido deveria estar, aqui ou ali, mais à esquerda, mais à direita, mais ao centro, ou que este líder não serve, ou que no passado se deveria ter feito diferente, há uma base ideológica indiscutível. O Chega não tem isso. 

É o primeiro partido na história democrática portuguesa que não se pode comparar com nenhum outro desse ponto de vista. Mesmo o PRD [Partido Renovador Democrático], no momento em que surgiu como uma tentativa de ruptura com o sistema, tentou uma abordagem parecida à dos partidos tradicionais. O Chega não: um militante do Chega não concorda com tudo o que André Ventura diz. 

Se Ventura definir dez causas do Chega, o militante tradicional ou eleitor do Chega escolhe umas quantas como se estivesse a ler o cardápio de um restaurante: "estas três interessam-me, é isto que quero". Pode não concordar com a castração química ou com a perseguição aos ciganos, mas acha bem o combate à corrupção. Fica com três e as outras sete descarta.

Depois, podemos discutir se os militantes têm bases para acreditar que essas promessas são sérias. Posso provar — e alguns trabalhos que fiz já o provam — que o Chega reproduz os vícios que diz combater. Dentro de si tem tudo aquilo que degradou a democracia. Mas isso é outra conversa.

"O Estado foi abandonando essas pessoas. Primeiro fechou o centro de saúde, depois o posto dos correios... Quem está mais à mão para levar uma carga de porrada por causa dessa frustração e desse ressentimento? As comunidades ciganas, os imigrantes."

Enquanto estigmatizarmos a base eleitoral do Chega com chavões, não percebendo a diferenciação que ali há, e que é muita, vamos fazer crescer o partido. E nós temos que discutir isso entre nós, e de uma vez por todas. Não é só dizer que são "fachos". O Chega não é um partido de "fachos". Sim, tem lá a pauta toda dos partidos dessa família. A violência simbólica está lá, nas causas, nas propostas, e remete para coisas que vivemos no século passado.

Mas isso não significa que o eleitorado do Chega seja comparável ao núcleo duro que decide o que Chega diz ou não diz. Enquanto não tivermos essa separação, até no tratamento jornalístico, estaremos a insuflar cada vez mais o fenómeno. Tenho-me esforçado — e sou criticado por alguns camaradas — em sentar-me à mesa com militantes e eleitores do Chega. Janto ou almoço com eles. Uns que estão no partido, outros que já saíram. E antes de discutirmos o que quer que seja do Chega, tentei perceber as opções que os levaram ali: os seus percursos de vida, familiar ou profissional. 

Há dezenas e dezenas de militantes do Chega, para não ir mais longe, que estão há 10, 12, 15 anos a candidatar-se a um emprego público — em câmaras, hospitais, escolas —, muitas vezes sem a formação necessária, e chumbam sempre. Vamos encontrá-los em caixas de supermercado ou em bombas de gasolina. Muitos chumbam por não serem aprovados na prova de conhecimentos ou de aptidão cultural, por não terem currículo. Estamos a falar de empregos públicos que são, muitas vezes, pouco qualificados, como cantoneiro ou jardineiro.

Esta é a interpretação que faço a partir dos meus trabalhos: essa frustração estava acumulada, mas não havia como a materializar. Não havia uma narrativa. E agora há. Não é a correta: "o sistema está tomado, tu não conseguiste esse emprego porque o PS toma conta disto". Mas eles aceitaram essa narrativa, porque lhes dá uma explicação para o que estão a viver. São fascistas? De todo.

No início, muita gente quis tomar o Chega como uma anomalia do sistema democrático, mas, no fundo, é uma consequência daquilo que se fez em democracia: a despolitização do quotidiano, a centralização do discurso político, a bipartidarização da governação. Era inevitável chegarmos ao Chega?

Voltando a um ponto anterior, é preciso relembrar que falhámos no escrutínio de uma série de políticas públicas que deveriam ter produzido efeitos concretos ao longo de vários anos. Depois, vale a pena mencionar o trabalho que fiz no terreno, precisamente para tentar perceber como é que aqui chegámos. Quando se chega ao pé das pessoas e, em vez de três perguntas de rajada, se toma tempo para conversar com elas e as ouvir, podemos chegar à profundidade do sentimento que as levou ao Chega.

Para isso, é preciso tempo, um tempo que o jornalismo não tem. Por isso é que reproduzimos chavões. Mas se o fizermos, percebemos que o que as levou ali foi, primeiro, o desencanto com o Estado. O Estado foi abandonando essas pessoas. Foi o que ouvi em muitos concelhos do Alentejo, onde o Chega tem expressão eleitoral: "o Estado não está aqui para nós". Primeiro fechou o centro de saúde, depois o posto dos correios...

E quem é que está mais à mão para levar uma carga de porrada por causa dessa frustração e desse ressentimento? Aqueles que estão abaixo de nós, como as comunidades ciganas, os imigrantes. Ninguém tem à mão um Passos Coelho, um António Costa, um Ricardo Salgado para o esmurrar, mas o cigano ou o trabalhador imigrante está logo ali. Não deveria ser assim.

A própria participação política dessas pessoas foi esvaziada.

A intervenção pública, do ponto de vista político, está reduzida aos partidos. Cortámos com muitas calorias ideológicas. Mesmo no espaço mediático, televisivo, o que se tem é a narrativa dos partidos. Não há espaço para outros movimentos, associações, outros protagonistas políticos que não venham dos partidos. Estive em Moura há pouco mais de um mês e a fragilidade política é gigante. Tanto à esquerda como à direita. As pessoas estão amarradas a conceitos, convenções e molduras partidárias e não saem disso. 

Fala-se muito da adesão dos jovens ao Chega. Sem querer caricaturar, que retrato se faz dos jovens de um concelho como Moura? A maioria vive em casa dos pais, não consegue arranjar trabalho, recebe dos pais ou dos avós uma mesada para gastar no ginásio ou numas cervejas, e o seu destino profissional é ir para a polícia ou para os bombeiros. É isto que o interior tem para dar aos jovens. 

O Estado fugiu, empregos nem vê-los. A discussão política é a narrativa partidária, nem sequer é verdadeiramente política. E, depois, temos um partido que oferece uma narrativa simples, a maior parte das vezes mentirosa, sobre aquilo que essas pessoas estão a viver. A que é que se vão agarrar?

Há sondagens que notam o rápido crescimento do Chega entre as camadas mais jovens, até aos 35 anos, e especialmente em zonas mais pobres e onde há menos oportunidades.

Na base eleitoral e militante dos Chega está toda a gente que esperamos que estejam: agentes das forças de segurança, guardas prisionais, aristocracia falida ou por falir, latifundiários, saudosistas do Estado Novo ou de coisas piores, empresários, donos de grupos económicos. Estão lá todos.

Mas seria impossível o Chega ter as ambições que tem, e a projeção que está a ter, se não fosse constituído por outras coisas. Estes setores que descrevi, todos juntos e por si só, não dariam ao Chega a força que ele hoje tem. Há muitos professores, do Ensino Básico à academia. Engenheiros, geógrafos, o que quiseres. O Chega está muito bem representado em todas as escalas da sociedade e nos diversos setores laborais.

"A propriedade dos órgãos de informação está há demasiado tempo frequentada por gente altamente duvidosa dos setores financeiro e empresarial, ou da área política, gente que andou no lodo das campanhas eleitorais. Se formos investigar isso, encontramos um esgoto."

Encontrei gente que teve um percurso político à esquerda — inclusivamente candidatos autárquicos do BE e do PCP — e até sindical, em alguns casos na CGTP. Só assim seria possível o partido crescer. De facto, com a sua narrativa, o Chega abraçou todos os setores, em todo o território nacional, que se sentem representados não por tudo o que o Chega defende, mas pelo menos por uma parte.

Tirando o núcleo duro de André Ventura, não conheço militantes ou ex-militantes do Chega — e falo regularmente com mais de 100, incluindo dirigentes e ex-dirigentes — que concordem com todo o leque daquilo que o André Ventura defende. É pesca à linha. "Concordo com a deportação de imigrantes, mas a castração química nem pensar." Começas a puxar a linha e vêm uma série de posições defendidas pelo partido que não estão sequer na equação mental destes militantes.

Se percebermos isso do ponto de vista jornalístico, tratando o assunto com isto em mente, vamos conseguindo aproximar-nos da velocidade a que o partido difunde as suas ideias.

Fala-se numa marcha racista em Lisboa, nas próximas semanas. Como é que um jornalismo sério e íntegro pode percorrer a linha ténue que separa cobrir e escrutinar a extrema-direita da propagação das suas ideias?

É difícil. É um work in progress [trabalho em curso]. Passo a vida a ler livros, artigos, estudos para conseguir perceber este fenómeno a partir dos mais diversos ângulos e compreender como o jornalismo tratou estes assuntos nos mais diversos sítios. Não tenho resposta imediata para muitas das questões que se levantam. 

Aliás, nestas matérias só consigo responder com exemplos concretos. Um dos últimos trabalhos que fiz para a Visão foi a cobertura do Movimento Habeas Corpus, do ex-juiz Rui Castro. Discutiu-se inevitavelmente, na redação, o que deveria ou não fazer-se. O movimento estava a ganhar um certo lastro em alguns setores, e eu ia acompanhando as suas redes sociais. Começaram a fazer manifestações relativamente pequenas.

Depois, conseguiram que a Câmara de Caminha lhes cedesse a sede dos Bombeiros Voluntário de Vila Praia de Âncora para fazerem uma conferência. O executivo, do Partido Socialista, não fazia ideia do que era o Habeas Corpus, nem a quem estavam a ceder aquele espaço. 

Pouco antes de publicar a peça, o ex-juiz foi a duas escolas da zona de Lisboa falar sobre democracia para 4000 alunos. Um ex-juiz negacionista, que tem à sua volta pessoas com um cadastro considerável e posições neonazis, alguns antigos mercenários em diversas guerras. É disto que estamos a falar. E este líder deste movimento entrou, como se nada fosse, em duas escolas públicas.

Decidiu-se, então, que se avançava com esta investigação e que se publicaria. Mas houve quem considerasse, dentro da revista, que isto não deveria ser publicado, porque seria propagar o fenómeno. Eu considerei que deveria ser publicado. Esta pessoa estava a falar para adolescentes dentro das escolas. O próprio Ministério da Educação fez chegar ofícios às direções regionais alertando-as para a situação. O fenómeno já era suficientemente grave e muita gente só foi alertada por esse artigo.

Eles conseguiram o quartel dos bombeiros porque — e isto foi-me dito pela assessoria da Câmara de Caminha — a Câmara considerou que o movimento não oferecia perigo. Uma das nossas funções é dar estes instrumentos às pessoas, para que possam tomar decisões informadas. A questão é como é que isso é feito.

Uma manifestação neonazi tem de se cobrir. Mas como? Não é, de certeza, dando aos promotores dessa manifestação uma autoridade ideológica que se baseia em discursos assumidamente anti-democráticos e anti-constitucionais. Isso são coisas que devem ser denunciadas pelos jornalistas. Prefiro que coisas destas sejam relatadas e escrutinadas, mas por gente que sabe o que está a fazer. E eu não sei se uma grande parte dos profissionais que estão neste ofício sabe o que anda a fazer, porque contribuiu para a ampliação de tudo isto.

Custa-me ir buscar este exemplo quando a rádio passa por um momento difícil, mas a TSF fez um fórum sobre o confinamento de comunidades ciganas durante a pandemia. Não podemos deixar-nos contaminar por isto. O que não invalida que se escrutine. Prefiro escrever e cobrir por excesso que por defeito. Quanto mais subterrâneos estes assuntos ficarem, pior será. Vão fazendo o seu caminho, conseguindo espaço, dando uma conferência num quartel dos bombeiros. Sabendo, talvez as autoridades tomem as suas prevenções.

Recebi dezenas e dezenas de mensagens e e-mails de pessoas que olhavam para o ex-juiz como uma personagem simpática e ficaram completamente aterradas depois de lerem o artigo. Houve gente que me disse: "pela primeira vez percebi quem era este homem". Isto faz parte das nossas tarefas.

Para isso é preciso um jornalismo livre, comprometido com a democracia e o povo. Além das carências de que sofre o jornalismo português, também há grupos e fundos de investimento sem rosto a comprar jornais, às vezes para acabar com eles, com ligações à oligarquia nacional e à extrema-direita. Qual é o papel destes capitalistas?

A propriedade dos órgãos de informação está há demasiado tempo frequentada por gente altamente duvidosa, oriunda dos setores financeiro e empresarial, ou da área política, gente que andou no lodo das campanhas eleitorais. Se formos investigar isso, quando acharmos que não há mais para onde cavar, encontramos um esgoto. 

A isso juntam-se redações depauperadas, o nosso próprio deslumbramento anestesiado e as transformações geracionais enormes, que fizeram perder memória e arquivo. Tivemos responsáveis editoriais neste país que desvalorizaram completamente a memória e os arquivos porque "está tudo no Google". Passaram estas mensagens às redações, em plenários. 

Muitos de nós gostariam que saíssem do Congresso [dos Jornalistas] posições muito assertivas sobre atitudes que temos de tomar, como uma greve. Eu compreendo esse desejo e, inevitavelmente, estarei com ele. Mas nós também temos que dar tempo a uma geração muito mais nova, que até há pouco se arrepiava ao ouvir falar de lutas laborais ou de sindicatos. Estes jovens jornalistas ainda estão a processar tudo o que lhes caiu em cima.

"Passamos a vida a diabolizar o financiamento público quando por essa Europa fora isso já nem é uma questão. Temos de discutir como se faz e não se faz. Não foi o mercado que nos trouxe aqui? Mercantilizar o jornalismo não é uma forma de autoritarismo? O mercado não é autoritário?"

A luta na Global Media teve à partida dois grandes méritos, por muito que os profissionais estejam a sofrer. Primeiro, o cerco de silêncio sobre o que se passava dentro das paredes das redações, muito agradável para as administrações, acabou. Muitos acharam que isto acabava ao fim de sete dias. Estavam habituados a que eu não relatasse  o que se passa na tua casa e tu não relatasses o que se passa na minha. Já saltámos esse muro com esta luta da Global. Não há volta atrás.

Segundo, esta luta foi liderada por uma geração que até há pouco tempo talvez fugisse dos sindicatos. Muitos séniores, solidários desde o início, estiveram lá porque foram arrastados por aqueles que mais têm a perder — porque ainda não têm estatuto nem carreira — e que não têm grandes conceções sobre o que são as lutas laborais no jornalismo.

Conheço algumas das pessoas que estão na frente desta luta. Uma ou outra trabalhou comigo. Quando à mesa se falava de questões sindicais, elas fugiam. Agora, estão a sindicalizar-se. Isto emociona-me. Estas lutas, em redações onde a camaradagem já não é o que era e as pessoas estão metidas no seu pequeno mundo, vieram criar laços entre pessoas que trabalhavam juntas mas não conviviam.

Está a recriar-se uma consciência de classe, em duplo sentido, nas redações?

Exatamente. Sei que temos muita pressa — e é legítimo que a tenhamos — de ir em frente, de partir isto, de fazer uma greve geral. Mas esta gente merece que lhes demos mais tempo para processarem a luta que estão a travar. Estão a chegar agora. Por isso é que ouvimos falar, no congresso, sobre "a luta das nossas vidas". Mas eles nem tinham consciência que seria a luta das suas vidas.

Em 34 anos de jornalismo, tendo convivido com outras gerações que viveram situações complicadas, nunca vi uma situação como esta. Houve restrições orçamentais, salários em atraso, mas nada como o que temos agora. Há gente que está a formar a sua consciência política, laboral, sindical e profissional em andamento. Não sei como esta luta vai acabar, mas já há aspetos positivos: muitos não voltarão atrás nestas questões. Nunca mais dirão: "sindicatos? credo, nem pensar".

Os mais séniores das redações deveriam comprometer-se com isto e afirmar a sua solidariedade com os seus camaradas mais novos. Isso nem sempre acontece. Temos chefias acomodadas e a olhar para isto de lado. Se isto resultar numa grande vitória para a classe, aí serão os primeiros a levantar as bandeiras, mas até agora não se comprometeram, sendo os que têm menos a perder, com a carreira feita, cartão de crédito e estatuto. Deveriam estar na primeira linha, mas não estão.

O jornalismo como está, no osso, com administrações compostas por gente que vem do esgoto das áreas financeira, empresarial e política, pode dar numa tempestade perfeita. Não queremos isso.

Sói dizer-se que o jornalismo é um negócio que dá pouco lucro, mas nem os jornais locais vão escapando à compra por magnatas e fundos de investimento ligados a partidos políticos. Enquanto isso, noutras regiões, temos autênticos "desertos de informação". O financiamento  público do jornalismo faz sentido?

Tenho um imenso respeito, e muita admiração, pelos jornalistas do interior destes país. Muitos deles há muito que mereciam o Prémio Gazeta e outros que tais. Não só pela resistência com que conseguem ainda hoje, com imensas dificuldades, blindar o seu estatuto editorial. Em meios pequenos, o poder que tenta condicionar o trabalho do jornalista está muito mais próximo. É quem se encontra no café.

Cobri a queda da ponte de Entre-os-Rios para a Visão, e sei como a Rádio Paivense resistiu a coisas inimagináveis para fazer um jornalismo que mostrou como, também do ponto de vista político e municipal, aquele problema foi ignorado e acabou naquela tragédia. Estes jornalistas são autênticos resistentes. São situações comparáveis, no quotidiano, a muito do que está a ser vivido na Global. Falamos em muitos casos, de não ter dinheiro para ter comida na mesa, e colocar o jornalismo primeiro. Conheço inúmeros casos destes por esse país fora.

Estou farto, e tenho-o dito muitas vezes e hei-de repetir quantas vezes for preciso, de ouvir sobre os supostos perigos do financiamento público. Farto. Passamos a vida a diabolizar o financiamento público quando por essa Europa fora isso já nem é uma questão. Temos de discutir, obviamente, como é que se faz e não se faz. Mas já não aguento com esses, "ai Jesus que vem aí o autoritarismo do Estado condicionar o jornalismo". Vamos ver uma coisa: não foi o mercado que nos trouxe aqui? Mercantilizar o jornalismo não é uma forma de autoritarismo? O mercado não é autoritário? 

É isso que temos. Vamos de uma vez por todas perder esse estigma e quebrar esse tabu. Felizmente, ainda que com declarações muito ténues dos responsáveis  dos órgãos de soberania, há algumas almas que começam a admitir que se pode encontrar uma solução. Até há pouco tempo nem isso diziam. E será um escândalo se, depois de tudo o que estamos a passar, estas questões não estiverem nos programas eleitorais.

O jornalismo é um bem de primeira necessidade para a democracia. Vamos meter isso na cabeça, e de uma vez por todas. Isto, inevitavelmente, terá de ser feito com fundos públicos. Há maneiras de escrutinar isso tudo. Agora, há uma coisa que também tem de ser dita: onde está o capitalismo português? Temos órgãos como o Setenta e Quatro, como o Fumaça ou o Divergente, que, tirando os seus leitores, vão muitas vezes buscar os seus recursos a organizações e fundações internacionais. Onde estão os nossos capitalistas?

A conta bancária que os trabalhadores do Global Media criaram para recolher apoios para aqueles que estavam com salários em atraso foi preenchida com contributos de camaradas nossos. E de leitores. Houve contribuições de €400 e €500. Não está lá nenhum empresário, tanto quanto se consegue saber. Não há um punhado de capitalistas portugueses que consiga perceber qual é o contributo que podem dar à democracia? A questão não se esgota nos financiamentos públicos, nos contributos desses empresários. A própria "sociedade civil" deveria sentir-se comprometida com isto.

O Miguel Poiares Maduro, agora já se pode contar, disse recentemente à Notícias Magazine e à RTP que a dada altura do terrível governo de Passos Coelho foi ter com algumas das fundações mais importantes deste país — presume-se, ainda que ele não tenha dado nomes — e disse-lhes que havia uma verba adstrita à presidência do Conselho de Ministros que seria o impulso anual do governo às fundações, para elas gerirem como apoio ao jornalismo. 

Frisou que não eram apoios às empresas que detêm órgãos, o que já é bem avisado. Seriam apoios para dar às redações. As fundações recusaram. Porquê? Ele o disse: era uma boa causa, sim senhor, mas por causa das peças e investigações que eventualmente poderiam ser feitas isso poderia trazer-lhes mais problemas que vantagens. Isto é um retrato da mercearia que é o capitalismo português. Nunca se compromete com a democracia que tanto diz defender em benefício das suas abébias fiscais e coisas que tais.

Em vez de andarmos a falar dos perigos do autoritarismo do Estado, porque é que não se discute papel do capitalismo português, que não se compromete com a democracia que o deixou pujante?